Resident Evil é uma série em crise?

Os números não costumam mentir. Na indústria gamer, os números que chamam atenção estão nas vendas e nas análises publicadas pela mídia especializada. Nos últimos dois anos, os números não estiveram ao lado da franquia Resident Evil: maioria das análises de RE 6 têm notas medianas ou baixas e metas de vendas não foram alcançadas. A Capcom esperava vender 7 milhões de cópias de Resident Evil 6 entre outubro de 2012 e março de 2013. A remessa inicial do título foi de 4,5 milhões de unidades, que teve recorde absoluto e histórico para a Capcom, ainda na pré-venda. No entanto, a chegada do jogo ao mercado não foi capaz de alavancar ainda mais as vendas, que iniciaram uma queda sem freio. O sucesso inicial foi convertido a fracasso em fevereiro de 2013, com um total de 4,9 milhões de cópias vendidas.

O que aconteceu? Como é possível que um produto apresente vendas inexpressivas durante três meses depois de chegar oficialmente às lojas, ultrapassando a remessa inicial em apenas 400 mil unidades (menos de 10% do total de vendas)? Um excelente planejamento de marketing, com o bombardeio constante de trailers, imagens e materiais na imprensa especializada garantiram que Resident Evil 6 gerasse um belo hype e chamasse a atenção do público. Finalmente, os dois grandes heróis da série, Chris e Leon, estariam juntos; o tão pedido retorno de Sherry aconteceria; zumbis; “Raccoon City all over again”; terror e ação juntos, com amostras para todos os gostos. A fórmula perfeita estava ali, na nossa frente, e uma mistura aparentemente revolucionária de nostalgia e modernidade, batizada de “Dramatic Horror” pela Capcom, fariam a série Resident Evil ter o balanço perfeito entre o que os fãs gostariam de ver e o que supostamente o mercado pedia, no “maior Resident Evil da história”. Resident Evil 6 deveria ser o jogo que faria o fã dos clássicos se sentir em casa, mas que também convidaria um jogador de Call of Duty para participar da festa.

Quando maior o hype, maior a queda

O público, depois de ver o primeiro trailer de Resident Evil 6

O hype inicial gerado por Resident Evil 6 foi (de forma bem inteligente) baseado puramente em nostalgia. Uma franquia de mais de 15 anos pode muito bem contar com seu próprio nome e passado para gerar interesse em um vasto público que já tenha colocado a mão em pelo menos um dos títulos da franquia. Quando personagens como Leon, Chris, Ada e Sherry são incluídos, todos ao mesmo tempo em um único título, a chance de algum tipo de empatia do público ser gerada é enorme. O cenário de Leon recebeu a maior carga nostálgica, com ambientes escuros, cerco em lojas de armas, caminhões desgovernados e outros detalhes menores que fazem os jogadores de longa data lembrarem-se dos clássicos do Playstation One; Ustanak é (ou era para ser) uma espécie de versão de Nemesis, perseguidor incansável; Ada e Leon voltam ao joguinho do amor mal resolvido; Jake é filho de Albert Wesker; Sherry gosta de falar sobre a presença de Leon e Claire em seu passado… As referências são inúmeras e foram elas que entupiram trailers e gameplays e fizeram o jogo conquistar a larga fanbase logo na pré-venda.

Ironicamente, enquanto tantas referências estão presentes, outras são completamente renegadas. Os puzzles que colocavam o jogador para pensar não se encaixam na jogabilidade acelerada do título (não, atirar em sininhos, procurar estatuetas no andar de cima e senhas óbvias de três números NÃO são puzzles). Traçar estratégias para sobreviver não é realmente um desafio quando munição e itens de cura não são mais um problema. A exploração é completamente nula: praticamente não há nada de interessante a ser buscado, um artifício do game diz para onde você deve se dirigir e, novamente, o próprio fluxo frenético não permite. Files, que complementam a história e dão dicas para puzzles (quais?) e estratégias não são mais parte do gameplay, sendo delegados a uma galeria totalmente à parte do jogo, desbloqueados ao atirar em emblemas. Inimigos são esponjas de balas do começo ao fim e as coisas mais banais são feitas com QTEs que praticamente fazem você quebrar o controle de tantos botões a serem apertados e tão rapidamente. É, talvez o jogador dos clássicos não se sinta tão em casa assim…

O comodismo de querer agradar a todo mundo

Quebrando completamente o fluxo desse texto, eu vou falar sobre a minha estante (aproveite para observar a sua também). Nela, eu tenho meus livros d’As Crônicas de Gelo e Fogo, de Harry Potter, Bridget Jones, The Walking Dead e outras coisas não ficcionais, tipo Oliver Sacks. Tenho alguns filmes também, que vão desde romances tipo “Chocolate” até ação-pra-macho, tipo “300”.  Eu não tenho muitos jogos, mas sou bem eclética, como a maioria dos gamers. Tenho jogos das franquias Assassin’s Creed, Dead Space e Uncharted, The Last of Us, Tomb Raider (da Square), Heavy Rain, The Walking Dead: The Game e obviamente, meus Resident Evil. Cada jogo, filme, livro, tem seu estilo próprio, sua identidade. Cada um é único e eu gosto deles puramente pelo que são, ainda que, às vezes, compartilhem certas características em comum.

Sequência com Jake e Sherry em uma motocicleta: difícil decidir entre rir ou chorar
Sequência com Jake e Sherry em uma motocicleta: difícil decidir entre rir ou chorar

A Capcom parece ter arrombado a casa de alguém, roubado uma estante e jogado tudo em um triturador de lixo. A maçaroca resultante foi batizada de Resident Evil 6. O jogo usurpa cenas e sequências de ação hollywoodianas que desafiam o senso do ridículo: quem mais aí perdeu a conta de quantas vezes Leon e Helena sobreviveram a quedas de aviões, de helicópteros, capotamento de veículos e outras explosões desnecessárias retiradas diretamente de algum filme batido de ação? Durante todo o gameplay é possível se perguntar: “o que raios eu estou jogando?” Sequências de perseguições com carros e motos que desafiam a sua inteligência e a realidade, que se resumem a apenas dirigir sem detonar o veículo poderiam estar em qualquer GTA, Need For Speed ou [insira outro jogo com carros/motos aqui]. O “indicador de direção” estranhamente lembra o dispositivo de Isaac Clarke, de Dead Space. Infindáveis “referências” a Call Of Duty, Battlefield, Gears of War, Uncharted… Resident Evil 6 tenta ser uma montanha russa frenética, copiando tantos jogos que foram sucesso de vendas, “AAA”, e ainda assim, realiza a proeza de ser monótono. Uma análise do site Destructoid parece ter definido bem: “RE6 quase parece uma piada, talvez uma paródia de videogames de grande orçamento”. Basicamente o site classificou Resident Evil 6 como o “Todo Mundo em Pânico” dos games.

Uma mistura de referências óbvias do passado da série com tudo o que já deu certo no mercado antes, sequências descerebradas e um roteiro bem ruim. Resident Evil 6 faz com que que Paul WS Anderson pareça o diretor mais competente para adaptar os games para o cinema.

Como fazer um jogo imprimir dinheiro?

3DS-It-Prints-Money

Há quem aponte como principal causa da crise em Resident Evil  as mudanças em relação ao passado, que fizeram com que a franquia se perdesse no próprio estilo. Depois de tantas transformações, a série se distanciou demais de sua fórmula original, sempre pressionada a alcançar mais e mais vendas. Talvez a perda de conexão com o survival horror original não seja exatamente o ponto crucial, mas sim o fato de Resident Evil 6 não ser nem mesmo um jogo decente de ação. Resident Evil 5, seu predecessor, esquece completamente as origens, ainda que sua história seja completamente recheada de passado. O tão criticado Jun Takeuchi não ficou em cima do muro, abraçou a ação de vez e cumpriu o prometido. Resident Evil 5 é o jogo mais vendido da franquia e o recordista de imprimir dinheiro da história da Capcom. Resident Evil 5 não tem nada de survival horror, mas pelo menos é ele mesmo.

O ano de 2012, em geral, mostrou que algo de muito errado está acontecendo com a franquia, e a vontade de fazer Resident Evil ser absurdamente lucrativo como Call of Duty, que chegou a gerar 1 bilhão de dólares em duas semanas, pode ser a raiz de tudo. RE é um dos carros chefes da Capcom e provavelmente é visto como uma franquia com potencial para alcançar o status “Call of Duty” de vendas. Em março de 2012, Masachika Kawata, um dos principais produtores de Resident Evil, afirmou: “Ao analisar dados de marketing para jogos de survival horror… o mercado é pequeno quando se compara ao número de unidades vendidas por Call of Duty e por outros jogos de ação. Um Resident Evil voltado para o survival horror não deve conseguir alcançar esses números”. Em outubro de 2012, logo após o lançamento de Resident Evil 6, Yoshiaki Hirabayashi deixou claro que alcançar um público cada vez maior é o objetivo da Capcom e que o terror pode ser uma pedra no meio do caminho: “Estamos fazendo jogos e precisamos ter apelo do grande público para sobreviver. É um problema decidir por qual caminho seguir. O quão longe devemos seguir em direção ao horror e perder o apoio do jogador comum? O quão longe devemos nos distanciar do horror e correr o risco de perder fãs do gênero, incluindo fãs de Resident Evil? (…) Acho ótimo ir até os limites do horror, mas talvez isso não seja o que devemos fazer para continuar a vender”.

Pedras vulcânicas socadas à parte, RE5 é melhor que seu predecessor.
Pedras vulcânicas socadas à parte, RE5 é melhor que seu sucessor.

A Capcom está em cima do muro: não quer abrir mão do gênero que a consagrou declaradamente, mas quer pegar uma fatia do bolo das grandes franquias de ação. Infelizmente, o que a empresa tem provado é que, além de não saber unir ação e survival horror, não sabe trabalhar isoladamente com nenhum dos dois gêneros. Não é à toa as nítidas falhas quando os extremos são observados. “Operation Raccoon City”, colocado nas mãos da péssima Slant Six, é um shooter lamentável; “Revelations” brinca de ser survival horror com sustos clichês.

RE6, aquele jogo que tentou ser tudo ao mesmo tempo, inclusive Battlefield e Call of Duty
RE6, aquele jogo que tentou ser tudo ao mesmo tempo, inclusive Battlefield e Call of Duty

Doutor, a crise é de identidade

A pressão do mercado em cima das vendas de Resident Evil não é recente. Em setembro de 2013, Shinji Mikami declarou que o resultado final de Resident Evil 4 surgiu devido ao fracasso comercial do impecável remake do primeiro Resident Evil. “RE Remake é um dos meus favoritos na série, mas o título não vendeu bem, talvez porque não houvesse pessoas preparadas para aceitar isso”, disse Mikami sobre a volta ao estilo. ”Por conta da reação com o Remake, eu decidi trabalhar em RE4 de forma mais direcionada para a ação. O jogo seria mais assustador e focado no terror se Remake tivesse vendido bem.”

RE4 é divisor de águas, ícone, referência, e motivo de amor e ódio entre os fãs
RE4 é divisor de águas, ícone, referência, e motivo de amor e ódio entre os fãs

Ainda que o discurso das viúvas de Shinji Mikami seja bastante contraditório, há de se admitir que sim, o cara é um visionário. Ele soube adaptar a franquia ao mercado muito bem e revolucionou a série dentro do seu próprio nicho, ainda que o resultado final se distancie do survival horror. Não havia game como Resident Evil 4. O título tem novos ares, é um jogo completamente diferente dos seus anteriores, mas ainda assim, um ícone que serve de referência para muito título “AAA” atual, desses que Resident Evil 6 tentou copiar desesperadamente. A inserção da ação a partir de RE4 pode não ser exatamente o problema, mas sim, a falta de alguém que realmente entenda as engrenagens da franquia perfeitamente e, consequentemente, saiba moldá-la, mantendo-a única (por mais viúva-do-Mikami que isso possa parecer). A solução para os problemas da franquia não precisa ser algo tão drástico ( e improvável) como o retorno de Mikami, mas é provável que falte na Capcom a ousadia que o criador de Resident Evil teve para manter a série interessante.

Resident Evil precisa se livrar dos clichês hollywoodianos, dos diálogos pobres, do mambo jambo científico. Enquanto a série parece caminhar cada vez mais para algo que parece um filme descerebrado do Michael Bay, continua presa às cópias ou revivals de Raccoon City, Umbrella, Albert Wesker… Por mais que tudo se distancie das origens, a série continua presa criativamente aos padrões estabelecidos até Resident Evil 5 e revivemos, a cada novo jogo, cidades destruídas, ambientes inspirados em George Trevor, vilões megalomaníacos, explosões que escondem provas, empresas maléficas, governos corruptos. Entre Resident Evil 5 e Resident Evil 6, o público foi bombardeado com jogos que somente reprisavam histórias já contadas antes: RE: The Darkside Chronicles (2010) retorna a RE2 e RE: CV, além de trazer uma nova aventura de Leon que se passa no ano de 2002; 2011 trouxe versões em HD de RE4 e RE:CV, além de RE: The Mercenaries 3D, sem história; 2012 traz RE: Operation Raccoon City, uma visão diferente dos fatos que ocorreram em RE2 e RE3, e RE: Revelations, que ocorre entre RE4 e RE5. Depois de seis títulos lançados em 3 anos, somente o último, Resident Evil 6, fez a cronologia caminhar adiante. Parece que acontece uma mistura de ânsia de abraçar o mercado com a insegurança de abandonar o que já deu certo um dia. Temos tantos títulos lançados nos últimos anos e nenhum para ficar na memória, nenhum que realmente valha a pena.

Simmons é novamente a personificação de gente poderosa e influente envolvida com corporações maléficas; Radames é só uma paródia de mal gosto de Albert Wesker
Simmons é novamente a personificação de gente poderosa e influente envolvida com corporações maléficas; Radames é só uma paródia de mal gosto de Albert Wesker

Resident Evil 6 foi anunciado como título ousado, mas é tão ridiculamente preso às origens que lança dúvidas sobre o fato de a Capcom ter realmente um departamento criativo funcionando no momento. A dupla Radames-Simmons é só um exemplo. Simmons é o rosto da Família, grupo de gente poderosa e de grande influência mundial. Ele precisa evitar que o presidente revele ao mundo que os EUA estavam ligados à Umbrella e foram parcialmente responsáveis pelo incidente em Raccoon City. Para isso, ele libera um vírus em uma universidade, causando… aquilo tudo o que já aconteceu em 1998, o que é muito mais fácil, rápido e prático do que simplesmente mandar alguém apagar o presidente com um tiro, e não soa nem um pouco como uma desculpa qualquer para enfiar um desastre biológico já visto outras 500 vezes em um roteiro. Radames decide se vingar de Simmons por motivos vergonhosos, porém totalmente compatíveis com a mediocridade do roteiro de RE6. Para isso, ela pretende causar um desastre biológico global, enquanto profere frases como “Eu não preciso de ninguém” e “Eu, Ada Wong, serei rainha de um novo mundo!” o que não lembra em nada “Eu não preciso de ninguém, eu tenho Uroboros”, “O direito de ser deus agora é meu” e “Uma nova gênesis está em curso, e eu serei o criador”.  Carla Radames é a mulher que chama Albert Wesker de tolo por tentar destruir o mundo, mas que pretende fazer o mesmo entre risadas maléficas. A Capcom esteve tão focada em pegar “referências” de títulos de sucesso, mas não conseguiu observar que muitos jogos aclamados e que venderam milhões abandonaram roteiros infantis como esse há tempos. Nem parece que a empresa está ciente de que o público que joga Resident Evil está na faixa entre 30-40 anos de idade.

Ação vs survival horror, fanservice vs inovação. E pra onde a gente vai?
Ação vs survival horror, fanservice vs inovação. E pra onde a gente vai?

Acima de tudo, a Capcom precisa parar com esse mimimi covarde e definir o que Resident Evil definitivamente é. Sim, a empresa toma uma postura extremamente covarde quando não decide se vai trabalhar terror ou ação inteiramente, enquanto as tentativas de unir os dois estilos foram falhas. É muito cômodo fazer o que todo mundo já fez antes e colocar culpa das metas não alcançadas no marketing (o sucesso da pré-venda diz o contrário). Essa indecisão e falta de postura firme com relação à identidade da série fica nítida quando a empresa assume discursos sobre invadir cada vez mais o território da ação, mas com o primeiro choramingo da fanbase, anuncia-se um “retorno às origens no próximo título”. Quantas vezes você já ouviu isso?

É preciso parar com esse medo de mudar (inclusive da própria fanbase), de ser diferente,  e de ousar para ser único. Tá na hora de a Capcom sair dessa falsa zona de conforto, arriscar tudo de vez e abraçar o bom e verdadeiro survival horror ou partir direto e assumidamente para a ação, mas sem apelar para os clichês do mercado (e os da própria franquia).

CRÉDITOS
Escrito por: Bruna Mattos (Yuna)
Data de Publicação: 14/01/2014

O texto não reflete a opinião do site REVIL, e sim do autor da análise.