Desde a antiguidade, o ser humano sempre teve uma atração peculiar pelo obscuro, pelo macabro e por aquilo que desperta medo. Essa curiosidade mórbida é um mecanismo evolutivo de sobrevivência: a curiosidade. Aprendendo e entendendo bem uma possível ameaça nós somos capazes de criar estratégias para lidar com o perigo da melhor forma possível. E graças a essa curiosidade pelo mórbido, o ser humano sobrevive há gerações num mundo que muitas vezes é perigoso e hostil.
Mas e quando essa ameaça vem de dentro? E quando a escuridão que habita nosso ser assume o controle e nos coloca cara a cara com nossos maiores medos, decepções, vergonhas e culpas? Esse gênero de terror levou a criação do estilo de horror de sobrevivência conhecido como “Terror Psicológico”.
No Terror Psicológico, você no papel do protagonista é o seu maior inimigo. A narrativa destes jogos é construída de maneira a mergulhar o jogador num ambiente de tensão e medo. O terror psicológico explora os aspectos mais sombrios da psique humana, frequentemente desafiando a sanidade do personagem principal. As ameaças muitas vezes são representações de aspectos psicológicos da mente do protagonista que desafiam a percepção do jogador, criando dúvida constante sobre o que é real e o que é fruto da mente do personagem. A mente dos personagens neste tipo de trama é capaz de influenciar diretamente o mundo físico a sua volta.
Mas você pode estar se perguntando: “Quanto de psicologia de verdade existe num jogo de terror psicológico?”.
Apresento então, caro leitor Carl Jung.
Carl Gustav Jung (1875 – 1961) foi um renomado psicólogo suíço cujas ideias influenciaram profundamente a psicologia contemporânea. Sua abordagem, conhecida como psicologia analítica, destaca a importância dos arquétipos, que são padrões universais e simbólicos presentes no inconsciente coletivo da humanidade. Esses arquétipos moldam nossos pensamentos e comportamentos de maneiras poderosas, como o arquétipo da mãe ou do herói. Além disso, Jung explorou o conceito de sincronicidade, que descreve a ocorrência de eventos aparentemente coincidentes que possuem um significado profundo e conexões emocionais. Sua obra é uma jornada fascinante para entender a complexidade da mente humana e como os símbolos e mitos desempenham um papel fundamental em nossa psicologia.
O terror psicológico incorpora os postulados de Jung ao nos inserir num universo em que mente e matéria são dois aspectos diferentes de um mesmo fenômeno. Assim como a realidade material objetiva afeta e produz efeitos em nossa mente, no terror psicológico a mente também é capaz de influenciar diretamente acontecimentos no mundo físico. Mas não para por aí! Jung em sua obra também explora também o conceito de arquétipo:
Os arquétipos de Jung e o conceito do inconsciente coletivo são componentes fundamentais na análise da psicologia humana e também desempenham um papel importante no gênero de terror psicológico. Carl Jung postulou que os arquétipos são padrões universais de pensamento, imagens e símbolos presentes no inconsciente coletivo da humanidade. Esses arquétipos incluem figuras arquetípicas como a mãe, o herói, o velho sábio, entre outros, que têm significados e associações profundas e transculturais.
No terror psicológico, os arquétipos muitas vezes são explorados de maneiras a evocar medo e ansiedade nos jogadores ou espectadores. Por exemplo, o arquétipo da sombra, que representa o lado escuro e reprimido da personalidade de uma pessoa, é frequentemente encarnado nos antagonistas, criando uma sensação de confronto com o próprio lado sombrio do protagonista. Além disso, o arquétipo da mãe pode ser distorcido para criar personagens maternais ameaçadoras ou demoníacas, gerando um profundo desconforto emocional.
O inconsciente coletivo, por sua vez, desempenha um papel na criação de uma atmosfera de terror psicológico, uma vez que envolve elementos que ressoam com experiências compartilhadas da humanidade, como o medo do escuro, de criaturas desconhecidas ou da morte. Esses medos universais são explorados para criar um senso de inquietação e identificação com o público, tornando o terror psicológico uma experiência profundamente impactante e, por vezes, perturbadora.
No game Alan Wake (2009), o protagonista que leva o mesmo nome do título do jogo vivencia uma experiência arrepiante de terror psicológico que mergulha fundo na mente do personagem. A trama de Alan Wake gira em torno de um escritor que, ao chegar a uma cidade chamada Bright Falls, se vê em uma batalha desesperada contra os horrores sobrenaturais que emergem de suas próprias palavras. O conceito de “Dark Place”, uma dimensão sombria em que tudo o que Alan escreve se torna real, é um exemplo fascinante de como o jogo explora a relação entre a psicologia e o terror. Nessa dimensão, o protagonista enfrenta pesadelos vivos que são criações de sua própria mente, desafiando sua sanidade e levando os jogadores a questionar o que é real. A narrativa habilmente brinca com os limites da percepção e da realidade, criando uma atmosfera de constante tensão psicológica e medo, onde o próprio Alan se torna o arquiteto de seus pesadelos.
Já em Silent Hill, a sanidade dos protagonistas e do próprio jogador é levada ao limite à medida que a trama se desenrola. No primeiro Silent Hill, Alessa é uma garota que foi escolhida para gestar o demônio Samael. O ritual para trazer Samael à vida necessitava que o embrião sobrenatural do demônio fosse alimentado por ódio e sofrimento. Para alimentar o demônio, então, Alessa precisaria sofrer até os limites da sanidade. Isso fez com que a garota fosse incendiada junto com sua casa em um incêndio. Anos depois, quando o protagonista chega em Silent Hill, o que vemos é uma cidade totalmente deserta e coberta por uma estranha névoa. Instantâneamente o dia se converte em noite e o protagonista se vê perdido numa versão alternativa de mundo; um mundo criado da combinação do medo e sofrimento de Alessa com a natureza demoníaca de Samael. Os inimigos do game são reflexos e representações dos medos reais e imaginários de Alessa, incluindo cães e até mesmo um monstro de um livro que Alessa conhecia.
Em Silent Hill, podemos observar de maneira ainda mais vívida a ação da sincronicidade de Carl Jung. Nesse universo sombrio, as mentes dos personagens desempenham um papel crucial, influenciando diretamente o mundo ao seu redor e dando vida a horrores aterrorizantes. A cidade de Silent Hill é um espelho distorcido das psiques dos protagonistas, onde suas mais profundas angústias, traumas e culpas emergem em formas horrendas e pesadelos palpáveis. Essa manifestação de seus demônios internos cria uma experiência de terror psicológico intensa, na qual os jogadores são confrontados não apenas com ameaças sobrenaturais, mas também com os terrores que residem em seu próprio subconsciente.
Silent Hill e Alan Wake são games que transcendem os limites do gênero de horror ao explorar de maneira profunda e perturbadora os conceitos junguianos de arquétipos, inconsciente coletivo e sincronicidade, oferecendo uma experiência única e angustiante que desafia a própria natureza da realidade.
Colaborou com ilustrações neste conteúdo: Ricardo Andretto