Evidentemente os games têm um poder único: transportar jogadores para universos completamente novos, onde a aventura, exploração e o envolvimento emocional andam de mãos dadas. Ao jogar, você não está apenas controlando um personagem; está vivendo uma experiência imersiva, descobrindo histórias ricas, explorando ambientes detalhados, e conhecendo personagens que deixam uma marca profunda. Isto é algo que os fãs de Resident Evil e de muitos outros títulos da Capcom conhecem bem. É muito mais do que simples entretenimento – é um convite para mergulhar em mundos complexos.
George R. R. Martin certa vez disse: “um leitor vive mil vidas antes de morrer; o homem que nunca lê vive apenas uma”. Podemos facilmente fazer um paralelo com os jogos. Um jogador, ao longo dos anos, pode viver inúmeras vidas, seja enfrentando armas biológicas em Raccoon City, caçando demônios com pistolas e espadas, ou até mesmo enfrentando coléricos com a ajuda de aldeões e uma sacerdotisa dançante em um mundo inspirado na cultura japonesa. A diversidade de experiências oferecida pelos videogames é imensurável.
Ainda assim, mesmo com a clara profundidade artística dos jogos, existem aqueles que ainda os veem apenas como uma forma superficial de entretenimento. Mas para aqueles que entendem a indústria, a arte dos videogames vai muito além dos gráficos. Ela está presente na projeção de som, nas narrativas, na jogabilidade inovadora e nas decisões criativas que moldam o mundo que você explora. Jogos como Resident Evil 4 redefiniram o gênero survival horror, e isto não é apenas uma questão de mecânicas; é arte na construção de atmosfera, tensão e emoção.
Este artigo tem o objetivo de propor uma reflexão: será que ainda podemos ignorar o impacto artístico dos games? Em tempos onde o cinema, a literatura e as artes plásticas já passaram por suas próprias revoluções, os videogames estão prontos para serem reconhecidos como uma nova e poderosa forma de arte?
O QUE É UM GAME?
Apenas para esclarecer, o termo “jogo eletrônico” se refere a qualquer jogo executado em um dispositivo eletrônico, sendo também conhecido como videogame ou simplesmente game. Essencialmente, os jogos eletrônicos exigem uma plataforma de execução — seja um console, computador, celular ou qualquer tecnologia que se invente futuramente — e permitem a interação do jogador por meio de controles, teclado e mouse, periféricos ou até tecnologias inovadoras que venham a surgir. Para completar a experiência, é necessário um dispositivo de saída, como uma televisão, monitor ou outro meio capaz de exibir imagens e sons.
A palavra “eletrônico” serve para diferenciar estes games de jogos tradicionais que não necessitam de aparelhos para serem jogados, como pôquer, xadrez ou jogos de tabuleiro. O dispositivo eletrônico é essencial para a experiência imersiva que os jogos eletrônicos proporcionam.
Além disto, a relevância dos games vai muito além do entretenimento; eles desempenham um papel significativo tanto na cultura quanto na economia global. A indústria dos videogames gera receitas colossais, superando notoriamente as indústrias do cinema e da música combinadas. Este setor não apenas movimenta bilhões de dólares, mas também cria oportunidades de emprego em diversas áreas, com uma contribuição crescente de profissionais brasileiros.
Os jogos eletrônicos estão presentes desde a década de 1970, acumulando mais de cinco décadas de inovação, criando mundos e experiências inesquecíveis. O que torna os games especiais é a sua capacidade de encantar e emocionar. Quem jogou Journey sabe o impacto de contemplar suas paisagens serenas. Aqueles que exploraram o vasto universo de The Witcher ficaram maravilhados com seus mistérios. Em jogos como Dark Souls, os jogadores experimentaram a tensão e a adrenalina de batalhas épicas contra chefes, enquanto The Last Guardian trouxe momentos de profunda felicidade, calmaria, tristeza e conexão emocional. Títulos como BioShock deixaram muitos refletindo sobre suas narrativas profundas e provocativas. De fato, os games são obras fascinantes.
A DÉCIMA ARTE?
Assim como filmes, músicas, livros e pinturas, os jogos eletrônicos também são um poderoso meio de expressar emoções e ideias, representando uma nova forma de arte que surgiu com a evolução tecnológica. Assim como o cinema e a fotografia emergiram com o desenvolvimento de novas tecnologias, os jogos eletrônicos oferecem uma plataforma única para a manifestação da criatividade humana.
Os jogos são, de certa forma, uma fusão entre filme e livro, com características próprias. O cinema é conhecido como a sétima arte graças ao “Manifesto das Sete Artes”, escrito pelo italiano Ricciotto Canudo em 1911. Ele classificou as artes em duas categorias: artes do espaço (pintura, escultura e arquitetura) e artes do tempo (música, dança e poesia). O cinema, por englobar tanto o espaço quanto o tempo, foi considerado a “grande síntese de todas as artes”.
No cinema, várias formas de arte se unem para criar uma experiência completa: imagens, música (trilha sonora), enredo, atuação, fotografia, dança e até poesia podem estar presentes em um único filme. Os jogos eletrônicos, por sua vez, também integram estas formas de arte, mas com um diferencial marcante: a interatividade. O jogador não apenas assiste ou ouve, ele participa da experiência. Ele pode explorar o cenário (que pode conter elementos de pintura, escultura e arquitetura), ouvir a trilha sonora e se envolver com o enredo, seja por meio de cinemáticas, diálogos ou até documentos espalhados pelo jogo. Além disto, os jogos oferecem a liberdade de ação, permitindo ao jogador escolher seus caminhos, suas interações e, de certa forma, moldar sua própria jornada dentro dos limites do jogo.
Além desta fusão de artes que compartilha com o cinema, os jogos eletrônicos oferecem uma vantagem significativa: a profundidade narrativa. Enquanto filmes são limitados por sua duração, e séries televisivas por suas temporadas, os jogos podem se estender por dezenas de horas. Isto permite um desenvolvimento narrativo mais profundo, com camadas de história, personagens e ambientes que evoluem ao longo do tempo, de forma semelhante a um livro. Alguns jogos podem levar mais de 50 horas para serem concluídos, permitindo que o jogador avance no seu próprio ritmo, assim como um leitor faz ao mergulhar em um romance.
Embora não haja um consenso definitivo, algumas fontes consideram a televisão como a oitava arte e as histórias em quadrinhos como a nona. Outros defendem que o rádio, a televisão e a fotografia compartilham o título de oitava arte. Diante disto, surge a pergunta: os jogos eletrônicos poderiam ser a décima arte? Alguns argumentam que, na verdade, os games deveriam ser classificados como a oitava arte. Apesar da aparente confusão em torno desta numeração, o debate em si ressalta um ponto importante: independentemente da posição que ocupem, os jogos eletrônicos são, sem dúvida, arte.
COMBINANDO CINEMA, LITERATURA E INTERATIVIDADE
O jogo The Witcher, por exemplo, oferece uma vasta gama de missões secundárias que exploram questões além da narrativa principal. O jogador assume o papel de Geralt de Rívia, vivenciando suas aventuras, conhecendo mais sobre a sua personalidade, interagindo com outros personagens por meio de diálogos e descobrindo os mistérios do universo de The Witcher ao ler documentos e explorar detalhes. É como se as páginas de um livro se materializassem no jogo, da mesma forma que um filme transforma palavras em cenas.
Embora existam jogos curtos, eles podem ser tão narrativamente impactantes quanto aqueles de longa duração, da mesma forma que um livro pequeno pode ser tão profundo quanto um romance extenso. Isto também se aplica ao cinema, com filmes curtos e longos, cada um com seu enfoque. Assim como filmes e livros, cada jogo tem sua própria proposta. Alguns focam menos na história e mais em outros elementos, como gráficos deslumbrantes ou trilhas sonoras poderosas, cada um contribuindo de maneira única para a experiência.
É neste sentido que os jogos podem ser vistos como uma fusão de cinema e livro. Além de contar com o audiovisual e a literatura, eles trazem a jogabilidade, que os torna uma forma de arte interativa e única. Jogar diferentes games é como assistir a vários filmes ou ler uma série de livros — cada um oferece um novo mundo para explorar, repleto de narrativas envolventes e experiências imersivas.
Um ótimo exemplo disto é Marvel’s Spider-Man. Além de ter um enredo intrigante, o jogo oferece colecionáveis que enriquecem a experiência. Cada item coletado vem acompanhado de um comentário de Peter Parker, revelando detalhes que expandem o universo do Homem-Aranha e complementam a estória. Estes colecionáveis são um exemplo brilhante de como pequenos detalhes podem aprofundar a narrativa, e mais desenvolvedoras deveriam adotar este tipo de mecânica.
Este tipo de abordagem também é visível em outros jogos como Fallout, Resident Evil, The Last of Us, Assassin’s Creed, BioShock e To The Moon. E não se trata apenas da história mas também da beleza dos gráficos, a arte visual do jogo que, tal como uma pintura ou uma escultura, pode ser fascinante.
Explorar os vastos cenários de Red Dead Redemption é uma experiência que vai além da estética: há uma conexão emocional. Cavalgar pelos campos abertos de New Hanover pode trazer uma sensação de paz e tranquilidade, permitindo ao jogador esquecer suas preocupações diárias. Já os cenários assustadores de Silent Hill despertam medo e vulnerabilidade, enquanto os ambientes desolados de Tormentum – Dark Sorrow transmitem um senso de desespero e solidão. Assim como uma pintura, os jogos conseguem evocar emoções profundas por meio de seus visuais.
Além disto, as trilhas sonoras dos jogos são uma forma de arte à parte. Elas conseguem transmitir sentimentos de segurança, como nas salas seguras de Resident Evil, ou criar uma atmosfera de mistério e apreensão, como em Ecco The Dolphin. Em jogos como God of War (2018), as músicas elevam o espírito de uma batalha contra um chefe, empolgando o jogador. Assim, os jogos não apenas combinam artes visuais, mas também a música, criando uma experiência completa e envolvente.
GAMES SÃO PERDA DE TEMPO!
Apesar de tudo o que foi exposto, ainda há questionamentos sobre se os jogos eletrônicos podem ser verdadeiramente considerados arte. Para os jogadores, esta afirmação pode parecer óbvia, mas em 2005, o renomado crítico de cinema Roger Ebert argumentou que não existem jogos “dignos de comparação com os grandes dramaturgos, poetas, cineastas, romancistas e compositores” e que os “videogames representam uma perda das horas preciosas que temos disponíveis para nos tornarmos mais cultos, civilizados e empáticos”.
O próprio Hideo Kojima, criador da icônica saga Metal Gear, expressou em uma entrevista em 2006 que compartilha desta visão de Ebert. Ele afirma que “arte é algo que irradia o artista” e que “se 100 pessoas passam e apenas uma se sente cativada por tudo o que aquela peça irradia, então é arte”. Para Kojima, os jogos são mais uma “espécie de serviço” do que arte em si, embora ele reconheça que o modo como um jogo é apresentado pode ser considerado uma forma de estilo artístico.
Kojima acrescenta que “arte é o que você encontra em um museu, seja uma pintura ou uma escultura. O que eu faço, e o que os criadores de videogames fazem, é administrar esse museu – decidindo como iluminar as obras, onde colocá-las e como vender os ingressos”. Esta analogia levanta questionamentos profundos sobre o que realmente define a arte.
Diante disto, somos levados a perguntar: o que é arte? Qual é a sua definição? Embora haja uma extensa discussão sobre o tema, a visão de que a arte é intrinsecamente subjetiva, tornando impossível uma definição universal, pode ser a mais acertada. O que é considerado arte por uma cultura pode ser visto como algo sem valor por outra, e o que não era reconhecido como arte em uma época pode ganhar esse status em outra.
O filósofo estadunidense Morris Weitz argumenta que as teorias falharam na “tentativa logicamente vã de se definir o que não pode ser definido, de determinar as propriedades necessárias e suficientes daquilo que não possui tais propriedades”. Para aprofundar esta compreensão, podemos nos referir ao artigo de Rosi Leny Morokawa.
Segundo Weitz, por seu “caráter expansivo e aventureiro, suas sempre presentes mudanças e criações novas”, a arte é logicamente impossível de ser definida por um conjunto de propriedades comuns às obras de arte. Quando tentamos definir a arte a partir de condições necessárias e suficientes, segundo a tese da impossibilidade da definição, fechamos o conceito por tentarmos aplicar à arte um tratamento aplicado aos conceitos matemáticos. O conceito de arte, para Weitz, é como o de jogo: possui alguma indeterminação, por isso é um conceito aberto. Uma definição fecharia o conceito de arte e estipularia o alcance do seu uso. Assim, podemos compreender que, para Weitz, as definições não somente falham em capturar a natureza da arte, mas impõem limites ao seu caráter criativo.
Considerando os pensamentos de Weitz, é evidente que não há como definir a arte. Assim, a tentativa de estabelecer um conceito resulta em limitações e, possivelmente, em contradições, como ocorreu com as afirmações de Kojima. Ele aplicou sua compreensão do que é arte, restringindo não apenas os jogos eletrônicos, mas também outras obras que podem não se encaixar em sua definição.
JOGOS SÃO ARTE!
É uma visão simplista considerar que os jogos eletrônicos são meramente programas de computador com regras pré-determinadas, cuja única finalidade é a vitória do jogador. Esta afirmação ignora a rica tapeçaria de detalhes e nuances que caracterizam a experiência de jogo, o que, por sua vez, fundamenta a ideia de que os jogos são obras de arte únicas. Seria o mesmo que reduzir a pintura “Festa Escolar no Ipiranga” (1912), de Agustín Salinas y Teruel, a uma mera paisagem, desconsiderando o significado, a técnica e a emoção que permeiam a obra.
Portanto, podemos concluir que os jogos não são apenas produtos de entretenimento; são, na verdade, criações artísticas que, assim como o cinema, conseguem integrar diversas formas de arte, como literatura, música e pintura, oferecendo ainda um diferencial: a interatividade. A capacidade de o jogador se envolver ativamente no universo do jogo transforma a experiência em algo singular e envolvente.
É compreensível que algumas pessoas ainda não considerem os jogos como arte, pois a aceitação desta ideia pode demandar tempo e reflexão. Afinal, dada a natureza subjetiva da arte, é provável que, assim como o cinema e a fotografia, os jogos eletrônicos venham a ser universalmente reconhecidos como forma legítima de expressão artística.
O jogo eletrônico é uma obra de arte que resulta do avanço tecnológico e integra elementos de outras artes, oferecendo a jogabilidade. Os jogos eletrônicos servem como um outro meio de manifestar emoções e ideias, outros meios de expressão que advém da criatividade humana, uma outra obra de arte.