Neste ano de 2024, a discussão sobre a propriedade dos jogos digitais que compramos ganhou intensidade após a Ubisoft, desenvolvedora francesa de games, “deletar” o jogo The Crew das bibliotecas dos jogadores, revogando o acesso depois do fechamento dos servidores, sem oferecer uma opção offline. Como resultado, o título não pode mais ser comprado ou jogado, o que gerou protestos entre os consumidores.
Jogadores têm expressado insatisfação com a Ubisoft, especialmente por meio de avaliações negativas na Steam sobre The Crew Motorfest, um novo lançamento da empresa. Declarações como “Se comprar não é possuir, piratear não é roubar” revelam o nível de frustração que cresce entre os consumidores.
Em setembro de 2024, o governador da Califórnia, Gavin Newsom, aprovou uma lei que obriga as lojas digitais a informarem claramente que, ao adquirir um jogo, o consumidor está comprando apenas uma licença de uso, e não a propriedade do game em si. Lembrando que a Steam já está cumprindo esta lei estadunidense, o que nos faz sentir uma insegurança sobre o futuro das relações de consumo na indústria dos games.
Sendo assim, vamos analisar este tema que claramente possui questões jurídicas bastante pertinentes e que envolvem o Direito Autoral e, principalmente, o Direito do Consumidor.
Aliás, o conteúdo deste artigo é uma extensão do material desenvolvido para um vídeo no canal Bomba Jurídica no YouTube, que se dedica ao estudo do Direito Brasileiro de forma acessível e interessante. Enquanto o vídeo aborda certos pontos de maneira mais aprofundada, este artigo discorre sobre o tema de forma mais simplificada, fazendo com que o conteúdo do vídeo e do artigo se complementem.
APENAS UMA LICENÇA DE USO
Ao comprar um jogo digital em plataformas como Steam, Epic Games, PlayStation Store, Xbox, Nintendo eShop ou Origin, o que exatamente você está comprando? Na verdade, você está adquirindo uma licença de uso. Mas o que isto significa? Basicamente, a licença permite que você baixe o jogo quantas vezes precisar, jogue-o sem limitações de tempo e aproveite outras facilidades, dependendo dos termos e condições da loja digital específica.
Em resumo, você obtém apenas o direito de usar o jogo, sem realmente ter a propriedade do game. Isto implica algumas restrições: você não pode revender o jogo, em alguns casos nem mesmo emprestá-lo para um amigo. O mais preocupante é a falta de garantias em relação ao seu investimento. Como assim? Por exemplo, se a loja digital fechar, todos os jogos que você comprou podem desaparecer com ela. E o direito de fazer uma cópia de segurança? Geralmente as lojas digitais não possibilitam o jogador baixar um instalador offline do game, o que deixa o consumidor em uma situação de incertezas e preocupação.
Este modelo de licenciamento de uso adotado pelas lojas digitais costuma ser justificado com base nas tecnologias de proteção contra pirataria, conhecidas como DRM (Digital Rights Management), ou Gestão de Direitos Digitais. O DRM é implementado para proteger a propriedade intelectual, permitindo que as empresas controlem o acesso e uso de seus produtos. Este sistema impõe restrições sobre o uso, cópia, compartilhamento e modificação dos jogos, visando impedir a pirataria e garantir que os desenvolvedores sejam devidamente remunerados.
Entretanto, esta prática acaba prejudicando os consumidores que compram seus jogos de forma legítima nas plataformas digitais. Primeiramente, o DRM tem se mostrado ineficaz para realmente combater a pirataria, uma vez que, muitas vezes, versões piratas dos jogos são disponibilizadas quase simultaneamente aos lançamentos. Além disto, esta tecnologia pode afetar o desempenho dos jogos, como ocorre com o Denuvo, um dos sistemas antipirataria mais usados, que frequentemente compromete a experiência do jogador. E mais, o DRM restringe o compartilhamento e não oferece segurança ao consumidor, que, na prática, não possui o jogo que comprou. Desta forma, o maior prejudicado por esta estratégia acaba sendo o consumidor, portanto, nós jogadores.
A GOG.com é atualmente a única loja digital que permite ao jogador baixar um instalador offline dos jogos adquiridos, garantindo maior controle sobre o conteúdo comprado. A plataforma, operada pela GOG Ltd., uma subsidiária integral da CD Projekt — empresa responsável por The Witcher e Cyberpunk 2077 — adota uma política diferenciada ao vender jogos eletrônicos sem DRM. Esta prática permite que os consumidores baixem e joguem seus jogos sem conexão à internet e sem a obrigatoriedade de iniciar o jogo exclusivamente pela plataforma digital.
Esta abordagem da GOG reflete uma postura mais amigável ao consumidor e representa uma alternativa ao sistema DRM. A própria loja digital reforça seu compromisso nos termos de uso, afirmando que, “na situação muito improvável de precisarmos interromper o funcionamento da GOG, faremos o nosso melhor para avisá-lo com antecedência, para que você possa baixar e armazenar com segurança todo o seu conteúdo sem DRM”.
Este cenário levanta duas questões cruciais na indústria dos games: o respeito ao consumidor e a preservação dos jogos eletrônicos. As práticas das lojas digitais, muitas vezes desfavoráveis — e talvez até abusivas — para o consumidor, podem dificultar a preservação de títulos ao longo do tempo. Por exemplo, há jogos na Steam que, embora pudessem ser comprados anteriormente, hoje não estão mais disponíveis, como Max Payne e Mortal Kombat (2011). Quem adquiriu estes títulos possui agora uma conta “rara”, por assim dizer, mas sem a real propriedade do jogo e, portanto, sem a possibilidade de garantir a sua preservação.
Diante desta realidade, torna-se compreensível que muitos jogadores optem pela loja GOG ou mídias físicas, ou até mesmo recorram a versões piratas de jogos que desejam jogar ou preservar. Estamos, de fato, em uma era sombria envolvendo os games.
Nas mídias físicas, o consumidor realmente adquire o jogo e pode usá-lo livremente, emprestar para um amigo, revender ou reaver o produto caso alguém o tome indevidamente — direitos assegurados pelo Código Civil brasileiro, que caracterizam a propriedade de um bem. No entanto, ainda assim podem existir complicações: algumas mídias físicas exigem conexão constante com a internet, restringindo o uso offline. Além disto, os dispositivos que rodam estes discos eventualmente se desgastam, e os novos consoles nem sempre garantem retrocompatibilidade, como é o caso do PlayStation 5, que, por exemplo, não lê discos originais do PlayStation 2.
Dito isto, entende-se que o PC é a melhor plataforma para a preservação de jogos eletrônicos. Contudo, com a predominância atual das vendas exclusivamente digitais para esta plataforma, garantir a preservação dos jogos se tornou uma missão cada vez mais complexa e desafiadora.
ASPECTOS JURÍDICOS DE JOGOS DIGITAIS
Existem várias questões jurídicas pertinentes e complexas envolvendo toda esta situação, mas, para acalmar os ânimos, há argumentos que beneficiam o consumidor e que resultam na máxima “você comprou, você é dono.”
Primeiramente, o Código de Defesa do Consumidor é totalmente aplicável neste caso, pois protege os direitos dos jogadores ao comprarem jogos digitais em plataformas como Steam, GOG, Epic Games e Ubisoft Connect, visto que estas lojas digitais são consideradas “fornecedores” pela legislação.
O CDC define o “fornecedor” como qualquer empresa que ofereça produtos ou serviços ao consumidor, incluindo empresas estrangeiras que atuam no Brasil. Neste caso, as lojas digitais são enquadradas como fornecedoras, e os jogos digitais, como produtos, mesmo não sendo físicos. A redação do § 1º do Artigo 3º do CDC é clara: “Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.”
De acordo com o CDC, o consumidor tem direito a informações claras sobre o que está comprando (preço, qualidade, riscos), proteção contra propaganda enganosa e abusiva, e contra práticas comerciais injustas, revisão de cláusulas abusivas em contratos, especialmente se elas forem desproporcionais ou deixarem o consumidor em desvantagem.
Outro ponto importante é que as lojas digitais utilizam contratos de adesão, que são contratos prontos onde o consumidor não pode negociar as cláusulas, sendo obrigado a aceitar o que está ali. Esta prática coloca o consumidor em desvantagem, haja vista que se trata de uma relação jurídica desbalanceada.
O CDC impõe que o consumidor deve receber informações precisas sobre o que está comprando. Se o site de uma loja digital não deixa claro que a compra é apenas de uma licença e não de uma “propriedade”, isso pode ser considerado propaganda enganosa, ainda mais ao considerarmos a lei que foi aprovada na Califórnia neste ano de 2024. E as compras de jogos que foram realizadas antes da aprovação desta lei? Percebe-se que há questões jurídicas pertinentes nesta situação toda.
Além disto, o CDC protege o consumidor contra práticas e cláusulas abusivas, que são aquelas que favorecem demais o fornecedor. Um exemplo é a cláusula que determina que jurisdições de outros países são competentes para resolver disputas com consumidores brasileiros. Ou seja, se você quiser discutir juridicamente alguma cláusula contratual, deverá ajuizar uma ação na Alemanha, por exemplo. Pela lei brasileira, uma cláusula que estabeleça isto é claramente nula.
Lembrando que muitas lojas digitais alteram seus termos de uso sempre que desejam, o que gera considerável insegurança para o consumidor.
No âmbito do Direito Autoral, existe um conceito jurídico chamado princípio de esgotamento do direito de distribuição, que, em produtos físicos, permite que o consumidor, ao comprar um livro, por exemplo, tenha o direito de revendê-lo ou emprestá-lo. Acontece que no meio digital esta regra ainda não está completamente clara, principalmente porque as plataformas de jogos estabelecem que você tem apenas uma licença de uso. Porém, há juristas que defendem que o princípio de esgotamento pode ser aplicado aos jogos digitais, garantindo ao consumidor mais liberdade sobre sua cópia adquirida.
Em outras palavras, defende-se a ideia de que o consumidor se torna dono da cópia do jogo adquirida, seja ela física ou digital. Contudo, é importante destacar uma distinção: enquanto o consumidor detém os direitos de propriedade sobre a cópia adquirida, os direitos autorais permanecem com o criador da obra intelectual — no caso, o jogo eletrônico e a empresa responsável pelo seu desenvolvimento.
Há ainda um ponto crucial: os jogos eletrônicos são vistos como programas de computador pela legislação brasileira, o que significa que se aplicam as disposições da Lei de Programa de Computador aos games. Entre os artigos desta lei, destaca-se o Artigo 6º, que lista situações que não são consideradas como violação de direitos autorais. O Inciso I deste Artigo estabelece que fazer uma cópia de segurança de um programa legitimamente adquirido não é uma violação de direito autoral.
Em outras palavras, quem compra um programa de computador tem o direito de fazer uma cópia de segurança deste programa. Isto significa que é permitido criar uma cópia de segurança de todos os jogos que você compra, sejam eles físicos ou digitais. No entanto, até o momento, apenas a loja digital GOG oferece esta possibilidade de forma verdadeira, enquanto as demais plataformas ainda não permitem que o consumidor baixe um instalador offline do game que comprou.
Por fim, existem entendimentos e casos estrangeiros que ajudam a avançar nesta discussão. Na União Europeia, por exemplo, houve um caso onde o Tribunal de Justiça Europeu decidiu que uma licença de software comprada digitalmente poderia ser revendida. Este caso sugere que o consumidor pode ter mais direitos sobre os jogos digitais do que as plataformas admitem.
Essas questões são fundamentais para os gamers porque impactam o controle que o consumidor tem sobre o que compra. Apesar de pagar um preço cheio no jogo digital (atualmente na média de R$ 350,00), o consumidor não tem os mesmos direitos sobre ele que teria sobre uma cópia física. Assim, uma proposta defendida é que os consumidores consigam ao menos baixar um instalador offline do jogo, como faz a GOG, permitindo acesso perpétuo ao game mesmo que a loja digital um dia pare de funcionar. “GOG garante a você seus instaladores offline, que não podem ser tirados de você“, diz uma provocação na rede social X (antigo Twitter).
Since checkout banners are trending, we’re thinking of putting one up ourselves. Thoughts on this one? pic.twitter.com/d3y66PrL7Q
— GOG.COM (@GOGcom) October 11, 2024
Entretanto, estes contratos firmados com as lojas digitais não necessariamente estão em conformidade com a legislação brasileira, sendo possível que eventuais processos judiciais aconteçam, e que a Justiça brasileira analise e apresente uma resposta definitiva sobre licenças de uso em games, o que pode gerar incertezas. Além disto, alterações legislativas também podem ocorrer para regulamentar melhor toda esta questão.
O QUE FAZER?
Diante de tudo o que foi discutido neste artigo, a situação é, de fato, desanimadora. A ideia de licença de uso parece, muitas vezes, ser mais uma penalização ao consumidor honesto, que optou por investir legalmente na indústria dos games. Neste modelo, o consumidor parece um inquilino que paga uma espécie de ”aluguel” único para ter acesso ao jogo, sem, no entanto, se tornar realmente dono dele.
É importante lembrar que este artigo buscou simplificar toda esta questão envolvendo licenças de uso, e, apesar da avaliação preocupante, há argumentos jurídicos que defendem o consumidor. Resta saber se, com o tempo, haverá mudanças positivas.
O que fazer, então? Qual seria a recomendação? Talvez, pelo menos por enquanto, a melhor opção seja comprar jogos digitais apenas pela loja GOG para o PC e optar pelas mídias físicas nos consoles, como PlayStation 5 e Xbox Series. Desta forma, o consumidor mantém uma propriedade mais segura sobre o jogo. No entanto, é importante notar que, no caso de jogos comprados no GOG, podem surgir complicações jurídicas se o consumidor desejar revendê-los — um ponto já analisado no julgamento perante o Tribunal de Justiça da União Europeia.
Dito isto, pense bem antes de comprar jogos digitais, pois, infelizmente, no fim das contas, você está comprando apenas uma licença de uso.
Imagem/destaque: Cena de Ace Attorney Investigations Collection, jogo da Capcom; uso da lógica é fundamental em investigações
Colaborou com a revisão e inserção de imagens neste artigo: Ricardo Andretto