Devil May Cry é uma franquia que já passou por muita coisa: foi rebootada, desrebootada, os jogos tiveram a ordem cronológica alterada, sofreu diversos retcons e até mesmo recebeu um anime canônico em 2007. Embora o anime seja visto com nostalgia pelos fãs, ele foi duramente criticado pelos mesmos durante o seu lançamento. Afinal, o jogo tinha um ritmo acelerado, o protagonista era bem-humorado e cheio de confiança, já o anime era lento, o protagonista era triste (e comia sundae de morango, um absurdo) e as lutas não tinham a mesma intensidade dos jogos.
Devil May Cry da Netflix vai além e o showrunner Adi Shankar (Castlevania, Captain Laserhawk) cria sua própria versão do universo de Dante em uma animação totalmente previsível, com um humor besta, diálogos risíveis, personagens caricatos, referências completamente aleatórias em uma série que parece ter saído diretamente do final dos anos 90… e ela é divertidíssima.

Deixa o diabo chorar
Devil May Cry acompanha o jovem caçador de demônios Dante, que busca vingança pela morte de sua mãe e irmão, quando surge um misterioso vilão conhecido como Coelho Branco. Ele quer unir as duas partes de um colar herdado por Dante e assim abrir um portal para o inferno. O vice-presidente dos EUA então usa um esquadrão de elite de uma empresa de segurança privada anti-demônios liderada por Lady para obter o colar de Dante e impedir o apocalipse.

Nos primeiros episódios da série somos apresentados a este universo e tudo grita o período de transição dos anos 90 para os anos 2000. Seja no estilo dos canais de TV, a trilha sonora e mesmo o design dos personagens, a série parece ter saído direto de uma animação dessa época (embora bem mais “adulta”). O próprio conceito de inferno é apresentado como se fosse algo mais científico do que fantástico, com a magia sendo uma tecnologia que os humanos não conseguem compreender.
Até mesmo o nome da empresa anti-demônios (Darkcom) é tratado como se fosse algo absurdo. Mas isso não é trazido de uma forma cínica como quem tem vergonha do material que está adaptando. Inclusive, toda a série é muito honesta em sua apresentação: ela é uma série edgy de ação com inspiração em obras dessa época de transição de anos, para o bem e para o mal.

Enquanto a série de 2007 era quase um slice of life de Devil May Cry, a nova animação traz um universo original com sua própria versão dos jogos. Vários eventos ocorrem de forma diferente. Histórias são alteradas e os personagens também, o que nem de longe é um problema, mas infelizmente a série toma algumas decisões que não favorecem a história que estão querendo contar, porque parece que contar uma história veio em segundo plano.
Os anos 90/00 ligaram…
Os primeiros episódios são bem expositivos e servem para introduzir o universo e colocar Dante em cenas de ação muito bem dirigidas. Apesar disso, no decorrer dos episódios a série vai ganhando mais força, carga dramática e parece que encontrando sua própria voz. Mas essa versão pode causar estranhamento nos fãs de longa data de Dante e companhia. Os jogos da franquia sempre tiveram exageros, maluquices e bobagens. A série da Netflix também tem essas mesmas maluquices, exageros e bobagens, mas é tudo feito através de uma ótica noventista norte-americana, que pode não agradar aos fãs dos jogos.

Todos os diálogos são exageradamente expositivos e os personagens novos trazem um ar de canastrice. Até mesmo Dante (interpretado por Johnny Yong Bosch, em inglês, e dublado por João Cappelli, em português) parece exagerado como um super-herói, usando humor e piadas ruins no meio de todo o caos. Mas ao longo dos episódios vemos uma boa evolução em sua apresentação.
Dante está se divertindo enquanto luta. Ele vive por isso. Zomba dos oponentes e apanha que nem um jogador que vai tentar jogar o Devil May Cry 1 pela primeira vez. O problema neste universo é que Dante, por mais que seja a peça central da trama, não tem um arco narrativo e tampouco parece ser o agente principal da história, que acaba sendo o papel de Lady.

Mary Ann Arkham (interpretada por Scout Taylor-Compton, em inglês, e dublada por Fernanda Crispim, em português), ou Lady para os íntimos, lidera um pequeno esquadrão anti-demônio que parece ter saído direto das páginas de uma revista da Wildstorm. Lady é tão protagonista quanto Dante na animação.
É ela quem acaba no centro da trama em busca de seus objetivos, mas a forma como ela foi escrita faz parecer com que não sabiam como dar dimensão para a personagem. Não vejo problemas dela xingar a todo momento, ainda mais sendo a única personagem da animação que fala dessa forma, mas tudo isso só faz o programa parecer uma versão escrita por um adolescente do que seria uma personagem descolada e, sinceramente, tenho certeza se foi justamente o que estavam buscando.

Infelizmente a forma que ela foi escrita não ajuda a personagem, ainda mais por não tomar decisões espertas durante toda a animação, cometendo ações que tornam sua redenção muito mais difícil. Além disso, Lady sim parece ter superpoderes, conseguindo bater de frente com demônios de nível alto. Ela sobrevive a quedas e explosões que teriam matado qualquer personagem secundário e ainda levantar para xingar mais um pouco. Não digo isso nem em comparação aos jogos, mas sim pela lógica apresentada pela própria série. De qualquer forma, tanto a personagem quanto a série estão encaminhando para um arco maior e, com sorte, veremos um bom desenvolvimento de ambos.

O vilão da série, o Coelho Branco, é um dos mais interessantes de toda a franquia (e potencialmente um dos melhores também). Toda sua construção é muito simples, previsível e clichê, mas ela é completamente eficiente contando com um episódio dedicado a ele em um estilo de animação único que é sem dúvidas o ponto alto da série e um dos melhores episódios deste ano.

Infelizmente, a maioria dos personagens secundários acabam sendo totalmente mal aproveitados e escanteados na primeira oportunidade. Na série temos figuras divertidas como Enzo, que repassa trabalhos para Dante, ou mesmo o vice-presidente que é um fanático religioso e uma clara alegoria ao Dick Cheney da era Bush. O mesmo acontece com inimigos clássicos da franquia que acabam sendo relegados a capangas genéricos. Todos têm muito potencial, mas não são nada aproveitados.
Não quero ser um idiota americano

A versão da Netflix apresenta uma crítica ao imperialismo norte-americano que, apesar de parecer fora de lugar para a franquia, pode ser bem trabalhada em futuras temporadas. Ao fazer a trama se passar nesse período próximo ao atentado do 11 de setembro, Adi Shankar usa uma casta inferior de demônios como alegoria para refugiados, em uma decisão que não parece ter sido muito refletida antes de ser executada.

Trazer demônios bonzinhos não é algo novo para a franquia cujo título é Devil May Cry mas, tal qual o filme Bright de 2017, usar criaturas que são literalmente a epítome do mal é uma escolha no mínimo de mal gosto. Em momento algum a série apresenta isso como algo mais complexo do que o tom geral da série e nem tenta ser mais sutil ou profundo do que realmente é. É o estilo que buscaram para a animação e entendo quem achar a decisão terrível, mas foi a forma como decidiram trazer a história nesta versão que parece um desenho de sábado de manhã dos anos 90 (com classificação +18).

Apesar de aceitar e apreciar o tom que buscaram para a animação, a série brilha mesmo quando se afastam mais desse estilo e encaminham para o conflito central da trama. Se eles estavam procurando o melhor caminho para seguir, espero que consigam encontrá-lo em uma segunda temporada.
O S significa Sexy

A animação tem lutas extremamente divertidas e bem dirigidas, contando com uma animação muito mais refinada que os Castlevania da Netflix (com exceção de um uso tenebroso de CGI). As lutas são acompanhadas por músicas que Dante provavelmente ouviria e também remixes e covers de músicas dos jogos. As novas faixas poderiam ser muito bem usadas em qualquer jogo da franquia e encaixariam como uma luva, só que muitas dessas músicas vem em momentos que não são tão bem trabalhados nesta nova empreitada.
Uma nova versão de Devil Trigger anima quando toca na cena, mas a cena não consegue ser sustentada somente pela música, ou mesmo quando o refrão de Bury the Light toca junto com a entrada de “Vergil”. É um fanservice de vergonha alheia, mas que combina com o tom geral da coisa. Inclusive, falando em fanservice, a série apresenta diversos easter eggs não somente de Devil May Cry, mas de outras franquias da Capcom.

Lucia (Devil May Cry 2) aparece logo no primeiro episódio como uma participação especial. Personagens da animação de 2007 são as caras por aqui. As roupas do esquadrão da Darkcom parecem ter saído de Captain Commando e há até mesmo algumas referências diretas a Resident Evil.
Não imagino que Adi Shankar esteja criando um universo compartilhado com outras IPs da Capcom e sim fazendo pequenas homenagens a todos esses jogos, mas se ele quiser seguir por esse caminho, gostaria de ver como ele faria isso. Eu particularmente estou ansioso por uma segunda temporada, ainda mais se eles conseguirem corrigir os defeitos da primeira. Devil May Cry tem muito potencial de crescimento e fico interessado em ver para onde eles pretendem levar a trama. Por enquanto, resta apenas aguardar para ver se o escritório de Dante continuará aberto para negócios.
Jackpot (?)

Devil May Cry da Netflix é uma série boba, óbvia, previsível e ela sabe disso. Adi Shankar usa esta versão tanto para fazer uma homenagem a este período entre os anos 90 e anos 2000 quanto para fazer uma crítica superficial ao imperialismo norte-americano, em uma obra cheia de defeitos, mas também cheia de paixão. Contando com uma animação de primeira categoria, cenas de ação de tirar o fôlego, muito nu metal e um grande gancho para uma segunda temporada, Devil May Cry da Netflix pode ser facilmente amado ou odiado (e está tudo bem).