Desde que foi anunciado na E3 2016, Resident Evil 7 gerou manifestações mistas do público. O título veio com a promessa de resgatar definitivamente o survival horror na franquia de 20 anos, mas faria isso com alterações conceituais e de mecânica.
A primeira grande mudança proposta por Resident Evil 7 foi a câmera em primeira pessoa, com o objetivo de intensificar o sentimento de imersão do jogador. Ainda, para a surpresa de muitos, o protagonista do jogo não seria um dos heróis já conhecidos da série, como Chris, Leon ou Jill, mas um homem comum.
Em Resident Evil 7 você é Ethan Winters, um homem que acreditava que sua esposa, Mia, havia morrido há três anos, até que ele recebe uma mensagem misteriosa sobre seu desaparecimento. As pistas sobre o paradeiro de Mia levam Ethan até a cidade de Dulvey, na Louisiana, onde ele encontra a propriedade da bizarra família Baker.
Esta análise é livre de spoilers!
O primeiro grande acerto: a campanha de marketing
Falar de como Resident Evil 7 foi divulgado não é analisar o jogo em si, mas precisamos considerar como a campanha de marketing impactou a experiência, especialmente quando se fala de um título de survival horror.
Jogos anteriores da série apostaram em publicidades massivas, com muitos trailers e a divulgação de grandes elementos da história. Qualquer pessoa mais atenta poderia “juntar as peças” e adivinhar todo o roteiro do jogo, tirando boa parte das surpresas durante o gameplay.
A demo Beginning Hour conseguiu trazer parte do tom do produto para as mãos dos jogadores. Dividi-la em três partes, com updates que iam aumentando o quanto da casa poderia ser explorado só gerou mais hype em torno do título. Enquanto muitos jogos da série precisavam de trailers e vídeos que entregavam boa parte da trama antes do lançamento para ficar “na boca do povo”, a expectativa em torno de Resident Evil 7 foi criada em torno de algo mais conceitual do que de partes do jogo em si.
Apesar de alguns vazamentos causados pelo datamining da demo do jogo para PC ou da venda antecipada de cópias físicas em alguns lugares do mundo, quem se manteve longe de spoilers conseguiu começar a jogar Resident Evil 7 exatamente como Ethan Winters: sem entender nada do que estava acontecendo.
Essa sensação e mistério e de não compreender o contexto no qual você está inserido só enriquece a experiência de terror: nada é mais assustador do que o desconhecido. O jogador vai descobrir a história junto com Ethan, a cada passo dado na propriedade dos Baker.
O survival horror voltou mesmo?
Depois de tantas promessas sobre voltar às origens e trazer o bom e velho survival horror de volta, a Capcom realmente cumpriu o que afirmou em entrevistas e na divulgação do jogo.
Resident Evil 7 atende muito bem às expectativas de quem esperava um título de terror e de sobrevivência. Agora, os inimigos realmente representam ameaças. Seja em combates contra os membros da família Baker ou os Molded espalhados pela propriedade, a grande maioria dos golpes provocam um dano considerável ao personagem.
Munição e itens de cura são relativamente escassos, mas é necessário explorar bastante o ambiente para encontrá-los. Ao contrário do que acontecia em jogos anteriores, os itens de interesse não “brilham”- há apenas um ícone de interação caso você se aproxime do objeto – o que faz muita coisa passar despercebida aos olhos do jogador menos atento. Muitas vezes é necessário agachar ou vasculhar muito bem o ambiente para encontrar os itens necessários para a sobrevivência de Ethan. Claro, esqueça a ideia de que inimigos vão dropar itens magicamente para você. Isso não acontece.
A administração de itens também é algo bastante presente em Resident Evil 7. Apesar das expansões de inventário, deve-se estudar muito bem o que carregar, e quando carregar. Além disso, o jogador precisa traçar estratégia do que fazer com os itens puros que devem ser combinados. Você encontra líquidos químicos que podem ser combinados com pólvora e combustível para formar munição para armas, ou com ervas para formar uma solução de primeiros socorros. Isso permite que o jogador se adapte melhor às suas necessidades em cada momento, mas requer o uso inteligente e planejado dos suprimentos.
Quem espera os famosos jumpscares encontrará vários, mas o game não se alimenta somente de sustos. Resident Evil 7 cria ambientes e situações hostis que fazem com que o jogador, muitas vezes, tenha insegurança em avançar. Esse sentimento é maior quando Ethan está sendo perseguido pelos Bakers ou está em locais marcados pelo lodo negro de onde os Molded surgem.
Os puzzles também marcam presença. Os enigmas voltaram de forma bem mais simples do que nos jogos clássicos da série e definitivamente mais intuitivos do que na demo Beginning Hour. Um trecho do jogo, em especial, é focado em puzzles ou em situações que demandam que o jogador use a cabeça para sair de determinadas situações.
Os saves manuais estão de volta, mas na dificuldade Normal não são exatamente um problema caso o personagem morra. O jogo possui alguns checkpoints com salvamento automático que garantem que o jogador não perca grande parte do progresso. O sistema funciona de forma semelhante ao que vemos com Resident Evil 4, mas com gravadores de fitas K7 no lugar da máquina de escrever. Na dificuldade Madhouse (Hospício) o salvamento se torna mais crítico: há poucos checkpoints e o jogador precisa coletar fitas para garantir que o processo seja salvo.
Inimigos e combate
Os inimigos de Resident Evil 7 não vão muito além do que foi apresentado. Somos atacados pelos Bakers e por alguns tipos de Molded diferentes.
Os membros da família impõem estratégias diferentes e são encontrados em perseguições (quando não há um combate exatamente), ou em boss fights. Nas situações de perseguição, seja com Jack ou com Marguerite, a abordagem furtiva é a melhor, mas Resident Evil 7 não é exatamente um jogo de stealth. A inteligência artificial dos inimigos não é das melhores para rastrear ou literalmente ver Ethan, ainda que ele esteja bem à vista. Durante as boss fights é que a diversão realmente começa. Os Bakers não são esponjas de balas. Cada luta demanda estratégias diferentes e também habilidades de combate propriamente ditas. Os encontros não são exatamente fáceis, mas não chegam a ser frustrantes como um jogo da série Souls, também. No entanto, enquanto as lutas contra os Bakers são divertidas e dinâmicas, o jogo perde parte da magia em um combate final um tanto duro e pouco criativo.
Já os Molded, os inimigos básicos do game, são ameaças relativas e podem ser comparados aos Ooze, de Resident Evil Revelations. Quando surgem sozinhos, podem ser enfrentados com certa facilidade, mas demandam que o jogador tenha uma boa mira para evitar o desperdício de munição. Quando aparecem em grupo, a coisa complica e Ethan passa a correr sério risco de morrer. Em algumas situações, é melhor correr do que tentar enfrentar vários Molded – não somente pela economia de munição, mas por uma questão de avaliação de risco, mesmo.
Com relação às armas disponíveis, Resident Evil 7 tem um arsenal relativamente modesto, mas que serve aos propósitos de um jogo de menor escala. As armas mais usadas pelo jogador acabam sendo a pistola e a escopeta (esta segunda, inclusive, nas boss fights). Outros armamentos, como o lança-chamas ou o lança-granadas são separados para momentos mais estratégicos e usados contra inimigos de forma um pouco mais específica. Vale lembrar que várias armas ocupam dois slots no inventário, o que demanda que o jogador coloque em prática as estratégias para a administração correta dos itens em cada momento.
Quem se preocupa com o fator replay, às vezes meio prejudicado em jogos de terror, pode esperar uma vida mais longa para Resident Evil 7. Depois de finalizar a campanha em modo de dificuldade “Normal”, é liberado o modo “Hospício”, que adiciona mais desafios. Ainda, em novos gameplays é possível perceber que o comportamento dos inimigos não é previsível como acontecia nos primeiros jogos da série. Em uma segunda partida, ainda no modo “Normal”, Jack agiu de forma completamente diferente e inesperada em uma batalha na garagem da casa dos Baker.
Vale destacar que embora Resident Evil 7 não seja especialmente longo (foi finalizado em 10:40min), possui o tempo certo: o gameplay e a história fluem sem se tornarem cansativos.
Cenários e ambientação
Resident Evil 7 acerta em cheio na construção de cenários de na ambientação do jogo. O game começa em um local um tanto quanto surpreendente, porém extramente intimidador. A propriedade dos Baker não é exatamente assustadora por si só, mas a perseguição constante imposta pelos membros da família tornam o ambiente hostil. Outros cenários apostam na escuridão revelada aos poucos por uma lanterna usada pelo personagem.
Ainda que muitas vezes haja um foco na parte visual dos games, especialmente quando se espera demais dos gráficos, o som dá um show a parte em Resident Evil 7. Assim como acontece durante a demo Beginning Hour, o jogador é cercado por barulhos que podem ou não ser provocados por inimigos ao seu redor: as madeiras do assoalho da propriedade dos Baker range, o vento uiva lá fora, galhos batem nas janelas, passos podem ser ouvidos nos cômodos ao lado ou no andar de cima… Jogar com fones de ouvido torna a experiência ainda mais completa.
Apesar do investimento em fotogrametria, Resident Evil 7 não é um jogo impressionante no quesito gráfico. O título está um pouco abaixo da qualidade observada em outros jogos do PlayStation 4. O design de alguns personagens é pouco convincente e artificial; alguns deles claramente foram feitos usando modelos reais e outros não. No entanto, a estética do jogo é muito bem construída e não há impacto negativo perceptível na imersão do jogador.
História e personagens
Resident Evil é uma série marcada não somente por suas mecânicas que se tornaram referência, mas pelo extenso lore e tramas envolventes. Resident Evil 7 traz uma história misteriosa, construída de forma a prender a curiosidade do jogador. Até mais ou menos a metade do jogo é difícil dizer o que realmente pode estar acontecendo.
O mistério vai se desenrolando aos poucos diante dos olhos do jogador e dos personagens. Como sempre, files cumprem o excelente papel de complementar a história (além de auxiliar em puzzles), e devem ser lidos durante o gameplay, exatamente como acontecia nos jogos clássicos. Já as fitas VHS decepcionam um pouco. Temos somente quatro delas ao longo da história e duas já são conhecidas do público. Apesar de serem divertidos trechos jogáveis, apenas uma delas realmente expande e explica a história.
Além das mudanças de câmera e de mecânicas, Resident Evil 7 trouxe uma reviravolta conceitual. Enquanto desde Resident Evil 4 acompanhávamos acontecimentos de larga escala e estávamos no epicentro de grandes conspirações, combatendo vilões e seus planos malignos, Resident Evil 7 nos coloca em outro lado desse universo. O mundo está tomado pelo bioterrorismo e qualquer um pode ser vítima das ações de empresas como a Umbrella – e agora estamos jogando na perspectiva de uma delas. Enquanto grandes heróis como Chris ou Leon devem combater os grandes vilões, cabem aos reles mortais sobreviver ou perecer em um planeta tomado por ameaças biológicas.
Ainda que o protagonista esteja na perspectiva de vítima e não de herói, Resident Evil 7 não deixa de lado as grandes conspirações e a ação de empresas farmacêuticas produtoras de armas biológicas. Tudo acontece bem mais no plano de fundo e pode ser observado de forma mais sutil e passiva.
A ideia de trazer Ethan, um homem comum e sem treinamento ao jogo, trouxe um grande impacto não somente para a história, mas para o gameplay. Por não possuir treinamento algum, Ethan é realmente surpreendido pela situação bizarra em que se encontra, criando uma excelente interface entre o jogador e o universo do game de terror. Em situações de perigo Ethan mostra sua vulnerabilidade especialmente quando precisa correr: o personagem é lento e sua velocidade pode ser ligeiramente melhorada apenas com “updates”.
No entanto, Ethan acaba sofrendo o mal de muitos protagonistas de jogos em primeira pessoa: a falta de carisma. O personagem é, muitas vezes, um mero observador dos acontecimentos e a história é conduzida e contada por todos os outros personagens envolvidos na trama.
Em contrapartida os outros personagens da história são bem mais carismáticos do que o protagonista. Isso é notado não só nas falas e nas cenas em que eles aparecem, mas também no trabalho de dublagem dos atores. Todos tem atuações incríveis e capricham no sotaque caipira do sul dos Estados Unidos. Jack, Marguerite e Lucas Baker dão um show a parte e, são, definitivamente, as estrelas de Resident Evil 7.
As ligações com o universo de Resident Evil eram uma das preocupações dos fãs com Resident Evil 7, especialmente pela mudança para um contexto de menor escala. Ainda que a trama de Resident Evil 7 seja plausível e verossímil dentro do universo da franquia, suas ligações com o passado são aparentemente fracas. Aparentemente mesmo, porque o final do jogo deixa mais perguntas do que respostas.
O final dúbio e incerto pode, por enquanto, ser interpretado de várias maneiras. Enquanto, por um lado, seja divertido estar ao lado da comunidade de fãs para debater e estabelecer teorias, fica nítido que a história só será totalmente compreendida após as DLCs prometidas pela Capcom. O que deveria ser conteúdo extra – e comprado à parte – pode se tornar algo obrigatório para quem desejar uma experiência mais completa, pelo menos no que diz respeito à trama.
Vale a pena?
Resident Evil 7 é uma experiência obrigatória para os fãs da série, sejam aqueles que conheceram a franquia eu seus primórdios ou enquanto o foco foi mais voltado para a ação. Ainda que o novo título não seja frenético como seus três últimos antecessores, não há marasmo em Resident Evil 7. Digamos que há sim uma adrenalina no game, mas um tanto diferente da dos títulos de ação.
A resistência com a câmera em primeira pessoa para alguns usuários é compreensível, mas vale a pena dar uma chance ao título ainda que você não seja um consumidor de jogos nesta perspectiva. A mudança de câmera definitivamente não determina o quão próximo conceitualmente este game está da série Resident Evil como um todo. Resident Evil 7 pode parecer muito diferente do resto da franquia à primeira vista, mas ao jogá-lo, os fãs da série vão perceber que estão realmente em casa.
Se há uma palavra para definir Resident Evil 7 é diversão – totalmente garantida. O game traz uma mistura de mistério com terror, violência e momentos engraçados (daqueles que fazem você soltar uma risada nervosa). Um incrível filme interativo de terror dos anos 80 lançado em pleno 2017.
Resident Evil 7 não é uma revolução na indústria como Resident Evil 4, mas, certamente, representa uma grande reviravolta na franquia. Não é possível dizer que o título acabou de reinventar a série, mas, definitivamente, foi capaz de reciclar muito bem os conceitos estabelecidos em 1996.
Bem vindo à família, Resident Evil 7!
Outras considerações
- “Este jogo contém cena de violência e gore” não aparece antes de você começar Resident Evil 7, mas deveria. O jogo é, sem dúvidas, o mais violento e sangrento da série até então.
- Além de “O Massacre da Serra Elétrica”, “Evil Dead” é uma grande referência para Resident Evil 7 (tanto o Remake de 2013 quanto os filmes clássicos).
- O jogo não usa somente referências desses dois filmes, mas o tom de terror é semelhante. Apesar da violência e gore exagerados, em muitos momentos o clima beira o “terrir”, com situações tão bizarras que deixam o espectador na dúvida entre estar impressionado ou achar graça.
- O título possui alguns easter eggs e referências ao primeiro jogo da série. Em determinada parte, os jogadores ouvirão sons extremamente familiares.
- Resident Evil 7 é dividido mais ou menos em 6-7 arcos cuja separação não é muito bem definida.
- A primeira metade do jogo tem uma forte presença dos Bakers, enquanto a segunda é mais focada em desenvolver a história e os backgrounds de Ethan e Mia. Os trechos dominados pelos Bakers têm estilos diferentes que refletem a personalidade de cada membro da família.
O jogo foi testado em um PlayStation 4 (modelo padrão) sem a funcionalidade do PlayStation VR, com cópia cedida pela Capcom Brasil. O gameplay para análise foi realizado na dificuldade “Normal”.