Faz 13 anos desde que o último jogo principal da série Silent Hill, Silent Hill: Downpour, viu a luz do dia — recebendo reações extremamente divididas. A partir do início dos anos 2010, a franquia começou a decair. Os tempos foram duros após a saída da equipe de desenvolvedores original, a Team Silent, depois do quarto jogo.
Pra muita gente — inclusive pra mim — a franquia estava se perdendo em sua própria névoa, desaparecendo aos poucos. Por anos, Silent Hill foi apenas uma lembrança.
Mas os tempos estão mudando — afinal, este ano marcou o glorioso retorno da série, surpreendentemente com dois jogos novos. Nos últimos anos, a desenvolvedora Neobards vinha silenciosamente (ba dum tss) trabalhando em algo sombrio. Essa escuridão se chama Silent Hill f, um jogo ambientado no Japão durante a era Showa (1960).
Escrito pelo autor renomado Rioishi07 e com o mestre Akira Yamaoka na trilha sonora, não tinha como não ficar no mínimo intrigado com o projeto.
Bem-vindo a… Ebisugaoka?
Em Ebisugaoka, uma pacata vila de pescadores, conhecemos nossa protagonista: Hinako Shimizu. Após uma briga intensa com seus pais, a estudante sai de casa e vai até a cidade para encontrar alguns amigos.
As ruas estão estranhamente vazias e um céu cinza paira sobre a região. Ninguém por perto — a não ser seus amigos, que parecem surgir do nada. Conforme o grupo conversa de forma meio desajeitada, a famosa névoa de Silent Hill começa a tomar conta de tudo.
É aí que a loucura começa. Os colegas se separam, e figuras monstruosas começam a aparecer, envolvendo Hinako num fenômeno que mudará sua vida para sempre.
Delicada? Eu acho que não
O interessante aqui é que a narrativa se alinha perfeitamente ao gameplay: Hinako cresceu inclinada a atividades “masculinas”, como filmes de ação e esportes. Isso lhe rendeu as habilidades necessárias para enfrentar os mais diversos horrores. O jogo oferece múltiplos níveis de dificuldade tanto para combate quanto para enigmas, permitindo customizar sua experiência.
Curiosamente, não existe armas de fogo em Silent Hill f — tudo é corpo a corpo, sendo coerente com o contexto e época. Hinako usa diferentes armas de uso limitado (canos de aço, tacos, machados etc.), com ataques leves e pesados que consomem estamina. Esse “vigor” também pode ser usado para esquivar para qualquer direção. Acima da barra de vida está o medidor de sanidade — segurando L2, você entra no modo foco, que permite contra-ataques e golpes carregados que atordoam os inimigos.
Quando um monstro prepara um ataque pesado, ele para brevemente — essa é a chance para “rebater” (parry). A mecânica exige costume, e muitos inimigos têm padrões de golpes únicos que você precisa aprender. O sistema lembra uma versão mais trabalhada do combate de Silent Hill 4: The Room, só que aqui você pode consertar armas danificadas.
O combate é brutal. Hinako literalmente quebra tacos de beisebol nessas bizarrices como se não fossem nada. A garota dá tudo de si, e graças as animações e design de som, você realmente sente esse desespero durante os confrontos.
Além da saúde, você precisa administrar sua sanidade, estamina, inventário e durabilidade de armas, já que os recursos encontrados pelo cenário são limitados. Em algumas situações, fugir é a melhor opção. Tirando algumas lutas obrigatórias, você pode despistar as criaturas ou até mesmo passar por eles sem ser visto.
Há também um sistema leve de upgrades nos santuários Hokura: você oferece itens ao Inari-sama (relacionado à agricultura e fertilidade), recebe pontos de fé e pode trocá-los por amuletos com bônus específicos ou, junto das placas Emma, melhorar atributos da protagonista permanentemente. Explorar a área em busca de itens para ofertar vale muito a pena.
Beleza no horror
Ebisugaoka é um show a parte. A estrutura da cidade traz aquela sensação familiar aos fãs de Silent Hill, com o retorno do sistema de mapa em tempo real, que dessa vez é literalmente uma obra de arte.
A vila da era Showa é formada por plantações, casas e construções empilhadas, formando caminhos claustrofóbicos que te deixam apreensivo a cada passo. As ruas destruídas e as áreas em construção acabam remetendo aos dois primeiros jogos da franquia.
Conforme a corrupção piora, a cidadezinha é consumida por flores e carne — semelhante ao “inferno enferrujado” de Alessa. Hinako, que recusa se encaixar no que é dito como feminino, acaba cercada por esse pesadelo florido.
Como nos jogos anteriores, cada área serve como palco para diferentes bizarrices. Locais como a escola, a floresta e residências trazem encontros tensos e atmosfera única. O Santuário Sombrio de Hinako atua como “seu mundo alternativo pessoal”, e ajuda a manter o ritmo da narrativa.
Você nunca fica no mesmo cenário por muito tempo, e em capítulos maiores, você verá muita variação de gameplay e ambientação. E, claro, cada quebra-cabeça tem sua importância narrativa — e os fãs de lore vão amar juntar as peças.
Familiar, mas diferente
A trilha sonora de Silent Hill sempre foi um grande destaque. Mesmo nos jogos menos elogiados, havia músicas marcantes que melhoravam a experiência.
Em Silent Hill f, a OST soa como uma mistura da música tradicional japonesa com o melancólico e industrial de Akira Yamaoka. A faixa de abertura começa com um coral infantil e instrumentos japoneses tradicionais que evolui pro estilo que já é marca registrada da franquia. Vale ressaltar também, que a colaboração de outros compositores como Kensuke Inage, dai e xaki também renderam faixas igualmente incríveis.
Escutando, fiquei emocionado quando lembrei do tempo que a série passou fora dos holofotes. No Japão existe o termo “mono no aware“, que fala sobre como tudo é passageiro e da beleza que há nisso — e isso também pode ser visto na jornada de Hinako.
Isso é… Deus?
Silent Hill f é, acima de tudo, a história de uma jovem crescendo em um mundo opressor. O jogo retrata normas de gênero da época, num ambiente que insiste em definir o papel de Hinako como mulher. A narrativa explora de forma sutil o sexismo histórico — casamentos arranjados, padrões “femininos”, não ter liberdade de escolha.
É angustiante observar a protagonista ser esmagada pelas expectativas culturais e sociais, tendo que abrir mão de sua própria identidade.
Explorando a área, você vai encontrar imagens de raposa em todo lugar. Além dos Hokari onde você reza e faz oferendas, há pequenos santuários espalhados por todos os cantos. Nos documentos e bilhetes espalhados pela cidade, vemos pessoas sofrendo uma crise de fé e adoecendo. O “kami” dessa vila pode ser real… e pode estar furioso.
Em certo momento, Hinako encontra com “O Máscara de Raposa” no Santuário Sombrio, um homem elegante e misterioso que parece guiar o caminho da protagonista com uma lanterna. Esses símbolos — raposas, oferendas e lanternas — te fazem questionar sobre as reais intenções dessa figura ambígua: protetor ou predador?
Fiquei impressionado que Silent Hill f adapta muito bem os elementos da franquia para uma cultura diferente. A talentosa kera foi a responsável pelo design dos inimigos, que trazem conceitos e significados que refletem os sentimentos dos personagens. E não espere aparições forçadas — nada de Enfermeiras ou Pyramid Head. O título respeita a essência da franquia, sem se escorar em nostalgia.
Ah, e um detalhe interessante: “gaoka” significa colina. “Ebisu” é o Deus da pesca. A vila, quieta e isolada, é literalmente uma colina silenciosa em espírito.
Ora, se eu soubesse…
Na sua primeira vez, recomendo que jogue no modo Narrativo, pra se acostumar. De início, achei o sistema de combate confuso e a “mira” um pouco estranha, mas depois de um tempo fluiu melhor. Nos modos mais difíceis, você precisa “limpar” a mente de Hinako para restaurar a sanidade — aqui existe um dilema entre usar sua fé para obter melhorias ou recuperar o atributo.
Outra coisa é que quando se trata de Silent Hill, é comum que a primeira jogada não acabe da melhor maneira possível. O Novo Jogo+ adiciona novas cenas, locais, arquivos, itens e, consequentemente, outros finais. Ao terminar, é interessante começar de novo, e de novo…
Vale a pena?
Silent Hill f é autêntico e traz a série de volta a vida. Ao ousar não se encaixar em moldes do passado, ele conversa com sua própria temática — lutar para ser você mesmo. Raramente recebemos jogos tão consistentes tematicamente — e é particularmente gratificante ver isso em um novo Silent Hill.
O jogo já está disponível para PS5, Xbox Series S|X e PC via Steam, Epic Games Store e Windows.
O jogo foi analisado no PlayStation 5 em cópia digital adquirida pelo autor. O texto não representa a opinião do REVIL como um todo.











