O pronunciamento de Lily Gao, male gaze e a representação da mulher nas mídias

Recentemente, conforme relatamos em uma publicação no Blog REVIL, Lily Gao, atriz que interpreta Ada Wong na mais nova versão Resident Evil 4 (ela também encarna a nossa espiã em Resident Evil: Bem-vindo a Raccoon City), se pronunciou a respeito das críticas e ataques que recebeu em suas redes sociais após o lançamento do jogo.

Ser a primeira atriz asiática a retratar Ada nos jogos de Resident Evil é uma honra e serei eternamente grata ao nosso produtor e diretor por tomar a decisão de optar por uma representação autêntica. É lamentável que, com o lançamento do jogo, também tenha surgido o sentimento muito familiar de ‘eu não pertenço’. Embora as críticas sejam esperadas, não é a primeira vez que um ator de outra etnia enfrenta assédio racista e sexista por simplesmente participar de uma produção. O elenco inautêntico perpetua uma imagem não-saudável que desumaniza ainda mais a comunidade que eles procuram retratar. É hora de parar de capitalizar apenas na imagem sexualizada, erotizada e misteriosa da mulher asiática e dar espaço para honrar todos os tipos de mulheres asiáticas. Minha Ada é uma sobrevivente. Ela é gentil, justa, inteligente e engraçada. Ela é imprevisível, resiliente e absolutamente não é um estereótipo.

Ela continua sua crítica de como o olhar ocidental sobre a mulher asiática tem sido historicamente marcado pela exotificação e objetificação. Assim, continua ela, “desde o século XIX, a figura da ‘mulher asiática’ tem sido romantizada, fetichizada e estereotipada em várias formas de mídia ocidental, incluindo a literatura, a arte e o cinema. Essa representação muitas vezes retrata mulheres asiáticas como seres misteriosos, sensuais e submissos, que estão disponíveis para atender aos desejos dos homens brancos ocidentais.”

Ada Wong em Resident Evil 4 (2023)

Isso nos faz refletir sobre algumas coisas. Existem vários estereótipos comuns associados às mulheres asiáticas na indústria dos games e cinematográfica, alguns dos quais incluem:

  • Dragon Lady“: este estereótipo retrata mulheres asiáticas como sendo dominadoras, manipuladoras e perigosas, frequentemente usando sua beleza e charme para controlar homens. Este estereótipo geralmente é acompanhado de uma representação hipersexualizada da personagem.
  • A “Lotus Blossom“: este estereótipo representa mulheres asiáticas como sendo dóceis, submissas, obedientes e extremamente femininas. Essas mulheres são frequentemente retratadas como objeto de desejo dos homens ocidentais e muitas vezes são sexualizadas em suas representações.

Isto posto, a gente consegue entender o porquê a Lily Gao entende a mulher asiática sob a ótica ocidental muitas vezes se baseia em estereótipos e preconceitos que não só desumanizam as mulheres asiáticas, mas também perpetuam a desigualdade e a injustiça em uma escala global.

A presença feminina nos games e na mídia é amplamente discutida e sempre foco de debate. Inclusive o REVIL também trouxe uma reflexão sobre o tema, no qual falamos um pouco sobre as diferentes formas de representação do feminino e o papel de todos nesse mundo em constante transformação.

Mulheres em Resident Evil

Mas aí vem a pergunta: o que todas as representações do feminino em Resident Evil, no mundo dos games e na nas produções audiovisuais têm em comum??? A presença do Male gaze.

Male Gaze ou Olhar Masculino é um conceito criado pela teórica feminista Laura Mulvey, que se refere à representação visual das mulheres na cultura popular, especialmente no cinema, como objetos sexuais para o prazer do espectador masculino. Essa representação é geralmente construída a partir do ponto de vista masculino, com enquadramentos que focalizam o corpo feminino de maneira erotizada, enfatizando sua beleza e sensualidade em detrimento de sua complexidade e humanidade. O resultado disso é a objetificação da mulher, que é vista como um objeto de desejo a ser consumido pelo olhar masculino, em vez de uma pessoa com seus próprios desejos e vontades. O conceito de male gaze ajuda a entender como a mídia e a cultura popular reproduzem padrões de desigualdade de gênero, perpetuando a subordinação das mulheres aos homens.

No entanto, recentemente, observa-se uma crescente consciência a respeito da presença do Male Gaze na mídia e, também, por parte de equipes de desenvolvimento de jogos. Através da inserção exponencial da presença feminina nestes meios de produção, vemos representações mais diversas e menos hiperssexualizadas das mulheres nos games, como é o caso de Mortal Kombat 11 que optou por vestir suas personagens com trajes mais apropriados para luta sem perder a identidade e personalidade das personagens.

Mulheres em Mortal Kombat 11

Seguindo esta tendência, Resident Evil 4 também mostra que a franquia amadureceu em relação ao RE4 clássico. A Ashley Graham que antes era uma personagem completamente indefesa, mimada e sem profundidade, evoluiu para uma Ashley mais madura, corajosa e independente que ajuda Leon sempre que pode e da maneira que lhe é possível.

Ada Wong, que antes usava um vestido vermelho decotado e revelador, agora ganhou um visual um pouco mais de acordo com sua profissão de espiã, mas sem perder o ar provocante e sexy que sua presença instiga.

Com tudo isso que mostramos até agora, e indo na contramão dessa tendência atual, alguns membros da comunidade gamer (a maioria homens) ainda insistem em perpetuar desrespeito pela mulher e pelo feminino diariamente nas redes sociais, como no caso de assédio sofrido por Lily Gao.

Esses comportamentos são prejudiciais e não devem ser tolerados. É importante destacar que essas atitudes não representam a totalidade dos jogadores de games, mas ainda é um problema que precisa ser abordado e combatido. Vítimas de assédio merecem apoio e solidariedade e os agressores devem ser responsabilizados pelos seus atos. Ao condenar esses comportamentos, estamos contribuindo para a criação de um ambiente seguro, mais inclusivo e respeitoso para todos na comunidade gamer, que sempre contou com a presença do público feminino.

Por isso, caro leitor, do mesmo modo que já fizemos em nossa reflexão pelo dia internacional da mulher, os convidamos agora também a participar dessa nova tendência conosco. É inadmissível que atrizes sofram assédio por conta que seu trabalho não atenda as “expectativas” de uma minoria de consumidores que se dizem fãs. Não só a Lilly, mas também recordamos os ataques que o Avan Jogia (Leon em Bem-vindo a Raccoon City) e a Hannah John-Kamen (Jill em Bem-vindo a Raccoon City) sofreram, e também o saudoso Lance Reddick (Albert Wesker), por conta da série da Netflix.

Avan Jogia como Leon S. Kennedy

Infelizmente, ainda persistem os que não sabem separar o ator (que no caso deles, fizerem seus personagens com maestria e profissionalismo, de acordo com o que o roteiro a eles dado foi proposto) do personagem, ainda não entendendo que o personagem é rico o suficiente para as inúmeras possibilidades que eles possam oferecer. Lamentavelmente, temos que sempre repetir o óbvio, mas a eles todo o nosso amor e respeito pelo trabalho que eles fazem para a franquia Resident Evil e para toda a indústria dos jogos.

Referências: Lily Gao (Instagram), The Dragon Lady Trope – Reclaiming Her Power, The Lotus Blossom Stereotype – Dangers of the Asian Fetish, Olhar masculino (Wikipedia), “Male gaze” e a prevalência da visão masculina e Love, Death + Robots: o Male Gaze da Netflix | mimimidias

Colaborou com a revisão deste conteúdo: Natália Sampaio