Revisitando Resident Evil – O Hóspede Maldito

Em 2023, poucas franquias de videogames podem dizer que tiveram tantas adaptações para as telonas quanto Resident Evil. Entre séries, filmes animados e duas continuidades live-action, Resident Evil é uma marca conhecida até para aqueles que nunca pegaram em um controle de videogame para jogar, mas nem sempre foi assim.

Antes de inúmeras continuações de qualidade duvidosas, decisões controversas e uma fanbase dividida entre amor e ódio, existiu um filme que começou tudo, lá no fatídico ano de 2002, e hoje, em homenagem a seu aniversário, resolvemos revisitar mais uma vez nosso maior “guilty pleasure”: Resident Evil – O Hóspede Maldito.

 

Ground Zero

O sonho de trazer Resident Evil para as telonas começou em 1997 quando a produtora Constantin Film adquiriu os direitos de adaptação dos jogos, porém ainda demoraria até o filme que conhecemos se tornasse realidade. Diversos diretores e roteiristas foram escalados pela produtora para tomar as rédeas do projeto. A primeira versão do roteiro foi criada por Alan B. McElroy, que na época estava escrevendo sua adaptação de DOOM, que também acabaria sendo descartada anos depois.

Nesta adaptação, McElroy teria descartado completamente a Umbrella Corporation ou os S.T.A.R.S.. A premissa seria que o governo dos EUA teria mandado uma equipe das Forças Especiais para resgatar cientistas presos em uma mansão, depois de perder contato com a primeira equipe da SWAT. Apesar das mudanças, o roteiro parecia fiel ao primeiro jogo, trazendo os mesmos personagens e monstros, mas a ideia foi enfim rejeitada pela produtora.

Após a demissão de McElroy, o próximo nome a tomar a liderança do projeto seria ninguém mais, ninguém menos que George A. Romero, renomado diretor e inspiração direta dos jogos da franquia. Romero havia chamado a atenção da produtora após dirigir um comercial para Resident Evil 2 e logo se mostrou uma escolha óbvia para a adaptação. O diretor diz ter escrito um total de 5 a 6 argumentos diferentes para a história, mas todos foram rejeitados. Em sua visão, Chris Redfield e Jill Valentine seriam os protagonistas do filme que teriam um arco amoroso, enquanto outros personagens dos dois primeiros jogos integrariam o elenco.

 

Não há respostas concretas para rejeição dessas primeiras versões do longa, mas alguns motivos apontados seria o custo de produção, a faixa etária elevada que o filme teria e, ao menos em relação ao roteiro de McElroy, o desânimo da produtora de adaptar o primeiro jogo, uma vez que o segundo já tinha saído, fazendo a adaptação parecer datada. Para os curiosos de plantão, um dos roteiros escritos por Romero é facilmente encontrado na internet hoje em dia, e é uma leitura interessante para imaginarmos o que poderíamos ter recebido.

Após essas e outras desventuras, foi apenas no fim de 2000 que a Constantin Film finalmente encontrou o diretor que procurava: Paul W. S. Anderson era um artista conhecido por sua adaptação de grande sucesso de Mortal Kombat e após conhecer Resident Evil, teria escrito um roteiro que seria quase uma cópia do jogo, intitulado Undead.

O diretor rapidamente chamou a atenção da produtora por sua experiência e a vontade de adaptar o filme não como uma reconstrução dos jogos, mas uma aventura que servirá de prelúdio para os mesmos, tentando ao máximo não contradizer o material original. Foi com essa tese que o longa finalmente começou seu desenvolvimento, intitulado na pré-produção como Resident Evil: Ground Zero (subtítulo eventualmente removido após a tragédia de 11 de setembro de 2001), o filme foi lançado em 15 de março de 2002 e em uma época que adaptações de jogos para as telonas eram quase um desastre garantido, e Paul Anderson conseguiu pela segunda vez o impensável: transformou uma adaptação de vídeo game em um absoluto sucesso de bilheteria.

You’re All Going to Die Down Here

A trama de Resident Evil: O Hóspede Maldito se passa em sua maioria na Colméia, um labotario da Umbrella Corporation situado no subterraneo de Raccoon City. No começo do filme podemos ver os trabalhadores do enorme complexo vivendo suas vidas, sem conhecimento de que um misterioso indivíduo acaba de roubar o icônico T-Virus, liberando ele no estabelecimento durante o processo.

O caos rapidamente toma conta da Colméia, conforme a própria instalação parece se voltar contra seus funcionários. Durante os primeiros 8 minutos de filme vemos a rápida e impiedosa aniquilação dos cientistas observada pelas silenciosas câmeras, os olhos da Colméia. É nesses primeiros momentos que podemos ver como essa adaptação tão distante das tramas dos jogos conseguiu encontrar a essência da série: na ambientação e no tom.

 

A atmosfera do Hóspede Maldito retrata corredores estéreis e assombrosos, laboratórios sem vida e um terror não mistico, mas cientifico (por mais imaginativa que seja essa pseudo-ciencia), nas cameras da Colméia já podemos ver indicios de uma ameaça maior do que os perigos biológicos: Uma força misteriosa e onipresente ameaçando a todos por trás dos panos, não tão distante de HAL 9000 (2001 – Uma Odisseia no Espaço). Esse terror quase sci-fi pode não ser a primeira coisa que pensamos quando pensamos sobre Resident Evil, mas era algo com que a saga sempre havia flertado e um passo sabio na hora de adaptar para as telonas.

Outra grande característica que podemos observar logo de início é que esta, sem dúvidas, é uma obra de seu tempo: os cortes frenéticos de Paul Anderson, a estética retrofuturista dos laboratórios e os quadros que entregam a direta influência de um mundo pós Matrix indicam que essa é uma cápsula do tempo, registrando o zeitgeist do começo dos anos 2000. Tal estética se traduz até em sua trilha sonora produzida por Marco Beltrami – compositor indicado duas vezes ao Oscar – onde poderiam facilmente ter infiltrado um Darude – Sandstorm e ninguém estranharia.

Após esse breve e assertivo prelúdio, conhecemos a mais icônica – e controversa – figura da franquia de Paul W.S Anderson: Alice. Todo fã de Resident Evil que já se aventurou nos filmes provavelmente tem fortes opiniões sobre a personagem que ao longo da saga passa de uma final girl amnésica com traços de Jason Bourne a uma super heroína movida pela força do Deus Ex Machina. Mas nesta primeira aparição de Alice ela é um personagem muito mais centrada, por mais que já esteja um pouco longe do realismo.

Ao longo do filme acompanhamos Alice, desorientada e sem lembranças de seu passado, recordando sua vida e envolvimento com a Umbrella, este sendo um dos principais mistérios do longa. Paul Anderson afirmou em entrevistas no pré-lançamento do filme que o arco de Alice foi pensado de forma a se relacionar com a experiência de um jogador entrando no universo dos jogos, primeiro sem contexto e gradativamente se aprofundando nas conspirações da trama. E dessa forma seguimos nossa protagonista enquanto conhece Matt, um policial que acaba de chegar em Raccoon City e ambos são “resgatados” por uma equipe de Forças Especiais da Umbrella Corporation e levados Colméia adentro.

O líder da equipe, apelidado de One, entrega duas informações essenciais a Alice que ditam a premissa do filme: eles foram enviados para infiltrar a Colméia e desativar a Rainha Vermelha, uma inteligência artificial no comando das instalações responsável pelo massacre e Alice é uma segurança da Umbrella encarregada de proteger uma das entradas para a Colméia. Logo também somos apresentados a Spence, marido de fachada de Alice que exerce seu mesmo cargo, e também sofre de amnésia devido a um sistema defensivo da Rainha Vermelha.

You’re Gonna Have to Work For Your Meal

Assim Alice, Matt, Spence e os membros das Forças Especiais (One, Rain, J.D e Kaplan) seguem sua jornada. Apesar desse número de personagens parecer em primeiro momento muita coisa para registrar, na prática a maioria deles são facilmente esquecíveis e fazem pouco na trama além de exercer a nobre função de todo coadjuvante em filmes de terror: servir de bucha de canhão. De pouco em pouco, vemos os personagens menos importantes perecendo aos perigos da Colméia, seguindo os arquétipos do gênero de terror.

One, o líder, é o primeiro a morrer, preso em na famosa cena do corredor de lasers, cujo os jogos viriam a referenciar em Resident Evil 4, essa morte em si parece ser uma referência a Alien, filme que Anderson afirma ter servido de grande inspiração, onde o líder da equipe também é um dos primeiros a morrer, deixando os outros inseguros e desnorteados.

 

J.D morre pouco após em seguida em uma cena cujo peso dramático é perdido pela falta de desenvolvimento de personagem, mas afeta profundamente Rain, sua dupla e amiga na equipe, enquanto Kaplan segue o arquétipo do personagem que fica para trás, mas milagrosamente volta no último minuto para salvar os companheiros, somente para falecer momentos após no clímax do filme.

Alice (Milla Jovovich) e Kaplan

Conforme o filme chega a sua conclusão, restam apenas Alice, Matt, Spence e Rain, os personagens em que o filme decide colocar maior foco. Durante a jornada, Matt revela a Alice que ele e sua irmã estavam tentando desmascarar os experimentos da Umbrella e tinham um espião dentro da Colméia, mas ele acha que o espião os traiu e causou este surto para fugir com o T-Vírus.

Alice se recorda de ser a espiã que iria entregar o T-Vírus para a irmã de Matt, mas não se lembra dos eventos que levaram ao surto. A trama se agrava ainda mais quando, tentando escapar da Colméia, Rain é mordida por um zumbi e os personagens passam a tentar encontrar a cura do vírus.

A narrativa culmina no terceiro ato quando a equipe descobre que não só o T-Vírus como a sua cura também foram roubados e é nesse momento que, como uma boa novela mexicana, Spence recupera suas memórias e descobrimos que foi ele quem sabotou a Colméia, pretendendo vender o vírus e a cura no mercado negro. Spence então recupera as ampolas e tenta fugir, mas é emboscado por um Licker liberado pela Rainha Vermelha.

Alice, Rain e Matt então recuperam as ampolas do cadáver de Spence e embarcam no trem que irá tirá-los daquele pesadelo, mas não antes de terem um embate final com o Licker, no qual, Matt é infectado e Rain finalmente se transforma em um zumbi. Após essa sucessão de tragédias, Alice e Matt finalmente escapam dos laboratórios, apenas para serem emboscados pela Umbrella. Matt, já sofrendo mutação, é enviado para integrar o projeto Nemesis, enquanto Alice é sedada e usada em experimentos cuja consequência só veríamos em futuras continuações.

O filme se encerra com Alice acordando em um hospital abandonado em Raccoon City após um período indeterminado de tempo, e logo percebendo que a cidade foi totalmente destruída pelo apocalipse iniciado na Colméia.

 

Ditando assim de maneira resumida os acontecimentos do filme fica fácil perceber a alucinação desenfreada da narrativa, que parece ser tirada direto de um filme b de terror dos anos 80, e leitores, vocês estariam absolutamente certos em pensar isso, afinal a única coisa mais conhecida do que Alice nessa franquia são as narrativas cada vez mais megalomaníacas construídas por Paul W. S. Anderson.

Mas ao menos aqui, nessa primeira adaptação, ouso dizer que a produção acertou na mosca o nível do absurdismo e clichês que englobava (e ainda englobam) o universo de Resident Evil, e hoje, sendo a trama mais (ênfase nas aspas) “plausível” dos filmes, ela agrega em seu charme, servindo como um raso instrumento utilizado para nos apresentar esse universo cinematográfico e as inúmeras ideias explorada.

O País das Maravilhas

Entre essas idéias, um dos conceitos mais absurdos acaba passando despercebido a maioria do público. Uma das ideias iniciais de Anderson, que acabou sendo diluída no produto final, era uma extensa analogia entre a narrativa de Alice em Raccoon City e as aventuras de uma outra Alice, que um dia também cairá em um mundo novo.

É dito que, ao apresentar os personagens para os atores, Paul Anderson os comparou a personagens do famoso livro Alice no País das Maravilhas, Michelle Rodriguez (Rain) afirma em comentários do DVD que seu personagem e J.D seriam Tweedledee e Tweedledum, uma dupla com forte senso fraterno, Kaplan tomaria o lugar do coelho branco, com sua frenética preocupação com o cumprimento da missão e o tempo que eles ainda possuem (essa característica também é observada em One), já Spence assume o lugar do gato de Cheshire, enquanto não há muitas informações sobre essa comparação, se especula que ela é dada pela natureza elusiva e misteriosa de ambos personagens.

Enquanto as comparações com a obra de Lewis Carroll tenha sido mais aparente nos primeiros esboços de Anderson, muitos elos ainda unem as duas tramas: na obra infantil temos Alice, que seguindo um coelho branco, cai por um buraco para um lugar excêntrico e peculiar onde precisa enfrentar a Rainha de Copas com a ajuda de seus amigos. Por mais perverso que seja o mundo de Resident Evil, os paralelos persistem e foram reconhecidos mais de uma vez por Paul em entrevistas.

Paul Anderson “try harder” na produção de Resident Evil – O Hóspede Maldito

Outras ligações com as duas obras são evidenciadas durante o filme: Alice (RE) tem visões de cientistas fazendo experimentos em um coelho branco, a Rainha Vermelha (que em si já é uma grande homenagem) demonstra grande insistência em decapitar suas vítimas e as duas protagonistas começam sua jornada caindo no sono e, ao saírem de seus mundos subterrâneos, voltam a realidade acordando novamente.

Legado

Comparações inusitadas à parte, diversos pontos positivos ainda se destacam no longa, que por mais que não se sustente como um ótimo filme, se mostra interessante e divertido durante todo seu desenrolar.

Apesar da narrativa frenética que descarta toda sutileza por momentos explosivos e se assemelha mais a Aliens de James Cameron do que Alien de Ridley Scott, ainda temos aqui o filme com melhor ritmo da franquia, optando seguir a narrativa de um thriller investigativo que fortalece em muito o que poderia ser apenas mais um filme genérico de terror, um gênero então saturado na virada do século.

Além do mais, hoje é fácil rever esse primeiro longa com o contexto de suas continuações e esquecer o impacto cultural da época, mas, O Hóspede Maldito finaliza com um grande final e um ótimo cliffhanger que daria espaço para especulação sobre inumeras maneiras que as continuações poderiam seguir, tudo isso seguido por Slipknot nos créditos finais, só para lembrarmos uma ultima vez a loucura que foram os anos 2000.

 

Claro, os personagens do filme são tão superficiais quanto poderiam ser e é difícil lembrar o nome deles mesmo logo após terminar o filme, mas a ambientação, o mistério e a entrega de atores como Michelle Rodriguez se mostram o suficiente para dar vida a esse mundo e provam que nem todo filme precisa ser o próximo Cidadão Kane para gerar entretenimento. Inclusive até James Cameron, conhecido não só por Aliens mas também por Titanic, Exterminador do Futuro e Avatar, quando questionado “Qual filme é seu maior guilty pleasure?”, respondeu na lata: Resident Evil.

Paul W.S. Anderson cumpriu seu propósito em criar uma prequel digna do universo dos jogos e, individualmente, esta primeira adaptação consegue contar uma história original que respeita em sua maior parte o cânone conhecido pelos fãs, e isso não é uma pequena façanha.

Com o passar dos anos, nós testemunhamos adaptações mais fiéis e até melhores surgirem, tanto sobre o universo de Resident Evil quanto outros jogos. Mas antes de The Last of Us, Castlevania, Arcane, Cyberpunk ou seja lá qual for sua preferência, lá atrás, no velho oeste das adaptações que eram os anos 90 e 2000, O Hóspede Maldito fez uma aposta: ele tentou adaptar não o enredo, mas a atmosfera, os temas e o imaginario do que era Resident Evil. Hoje podemos gostar ou não do produto final, mas o resultado foi um sucesso que abriu as portas e se assegurou de que elas continuassem abertas para todas as adaptações que vieram em seguida, e esse não é um legado nada mal de se ter.

Colaborou com a revisão deste conteúdo: João Alves