Shinji Mikami, o pai espiritual de Resident Evil, participou de um documentário do canal Archipel, especializado em artistas e criadores de conteúdo japoneses. Em um vídeo de mais de 30 minutos, o profissional fala sobre a sua carreira e como foi parar desenvolvendo jogos eletrônicos. Além da franquia de zumbis, Mikami é um dos responsáveis pelo surgimento Dino Crisis e God Hand, da Capcom. Foi também o impulsionador da mudança na jogabilidade de Resident Evil, com RE4, título que inspirou outros desenvolvedores com seu estilo.
Fora da companhia, Mikami é conhecido por outro survival horror, The Evil Within. Ele trabalha atualmente em Ghostwire: Tokyo, da Tango Gameworks, estúdio que foi recentemente adquirido pela Microsoft em um acordo com a ZeniMax Media. Assista a entrevista (com legendas em inglês) ou continue lendo esta notícia para um resumo de todo o conteúdo audiovisual:
No vídeo, Shinji Mikami diz que não tinha muito interesse em jogos no começo e que teve seus primeiros contatos em arcades com um amigo, que gostava de companhia nesse tipo de entretenimento. Um dia, esse mesmo colega deixou intencionalmente a página de uma revista rasgada com o anúncio de um jogo de luta na casa dele. Como Mikami era fã de artes marciais, achou que valeria a pena a tentativa. Depois do gesto do amigo, ele passou a frequentar arcades e começou a amar jogos. O título que fisgou a sua atenção inicialmente foi Appoooh, da Sega (1984) – veja uma amostra de gameplay clicando aqui.
Mikami estava a procura de um emprego na época e queria se envolver em algo, como um jogo de videogame. Foi rejeitado em alguns trabalhos e não estava bem interessado na Capcom. Ele diz ter sido atraído depois que soube que a companhia seria listada na Bolsa de Valores de Tóquio. Ele conversou com Yoshiki Okamoto – envolvido na criação de Final Fight (1989) e Street Fighter II (1991) – e achou que seria interessante fazer jogos. Mikami também procurou Akio Sakai, chefe de desenvolvimentos na época, que revelou que alguns funcionários tiveram o salário triplicado logo no primeiro ano, algo que “parecia um sonho”.
O profissional Shinji Mikami descobriu que nem tudo parecia ser como disseram logo quando ele entrou. Primeiro por uma confusão durante seu primeiro teste de trabalho, que consistia em uma prova escrita e uma entrevista. Depois de passar nessa primeira fase, o candidato tinha acesso a uma cópia de um jogo, que Mikami acredita ter sido Willow (1989) – veja uma amostra de gameplay clicando aqui – significando que você tinha passado no teste. Apesar de ter tido sucesso nas duas primeiras etapas, acabou sendo mandado pra casa, mas depois alguém da Capcom ligou dizendo que ele tinha sido aceito.
Mikami iniciou o seu trabalho na companhia meio que com um apadrinhamento de Yoshiki Okamoto e Tokuro Fujiwara, que esteve envolvido na direção de Sweet Home, uma inspiração para a franquia Resident Evil. Os dois conversaram com o RH, pois, na verdade, Mikami tinha tido uma pontuação ruim no teste escrito, assim como outros profissionais na mesma situação. Quatro pessoas foram escaladas para a divisão de consoles no final, dois deles inicialmente rejeitados. Eram chamados de “grupo zumbi”, por que eles morreram e foram trazidos de volta à vida.
Fujiwara, superior de Shinji Mikami na época, o chamou no escritório e falou sobre um título do NES, Sweet Home, que era inspirado em um filme de terror de Juzo Itami. Como jogo, o produto não foi um sucesso, mas Mikami foi estimulado a criar um novo conteúdo usando suas mecânicas. O profissional confessa ter amado Sweet Home e que desconstruiu o jogo para criar a sua própria visão.
- Leia também: Conheça Sweet Home – A Origem de Resident Evil
Logo no começo, no primeiro mês, Mikami pensou em algo baseado em fantasmas ao se questionar sobre o que seria assustador. Na época, zumbis eram retratados em alguns filmes, mas ele acreditava que espíritos pudessem ter um efeito melhor. Só que esse pensamento talvez não funcionasse bem para um bom jogo que agradasse os fãs de terror, o que refletiria diretamente no número de vendas. O plano, então, foi refeito do zero para algo que pudesse ser mais acessível.
Mikami se lembrou do filme O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead – 1978) com personagens lutando pela sobrevivência, onde o espectador assiste e meio que grita com eles quando tomam uma decisão errada. Ele tinha que ter isso em em um jogo que as pessoas pudessem escolher entre lutar ou correr, decidir não seguir por caminhos perigosos, ou fazer o que lhe dessem na telha. Esse era o tipo de inovação que ele gostaria de trazer ao mercado.
Shinji Mikami conta ter considerado o elemento do medo e pensado em fazer um um jogo de terror que pudesse ser utilizado para entretenimento. Ele também diz ter sido influenciado pelo O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chainsaw Massacre – 1974), que começa com um personagem entrando em uma casa assustadora. Então, o icônico Leatherface aparece com um machado e o mata, arrastando o corpo como uma carne de gado. Mikami confessa ter gostado desse medo repentino.
Há uma certa referência com um caçador aparecendo e repentinamente atacando em Resident Evil (1996), com o Hunter, uma criatura que nos pega de surpresa. Mikami releva que aí há uma certa influência – ao filme.
A ideia inicial era que Resident Evil fosse um jogo em primeira pessoa e que a perspectiva poderia ser assustadora, mas a Capcom não tinha muito experiência com 3D, não a ponto de colocar na tela o que ele tinha em mente. Foi quando Mikami viu em Alone in the Dark (1992) uma solução, com cenários pré-renderizados de fundo, só que isso significava voltar a um jogo em terceira pessoa.
Sobre essa situação, Mikami diz que apesar da frustração, no final, muitos jogadores disseram que essa visão (em terceira pessoa) é que tornava o jogo assustador, foi quando ele ficou meio envergonhado de pensar que somente a primeira forma (em primeira pessoa) funcionaria.
Ainda na atualidade, Shinji Mikami confessa receber feedbacks positivos sobre “aquilo ter funcionado muito bem”, mesmo que ele tenha considerado como uma solução alternativa. Uma prova disso foi Resident Evil 4, que mostrou que o terror permanecia presente com a câmera sobre o ombro e não algo guiado só por uma visão do personagem. Mesmo assim, as pessoas ainda lembram que é o original, de 1996, que tem o real sensação de terror.
Mikami afirma se incomodar quando o assunto vem à tona e pede que as pessoas parem, já que mudanças acontecem dependendo da experiência adquirida. “Quando se é jovem, você sente que pode fazer as coisas. A energia, a paixão e resistência são melhores. No entanto, sem experiência, mesmo sentindo positividade, não se é maduro o suficiente para compilar as coisas ou mostrar isso aos jogadores”, alerta o profissional. “Só que quando se ganha experiência, se torna mais eficaz em satisfazer os jogadores, mas seu gosto começa a desaparecer”, completa.
Para Shinji Mikami, a criação de jogos exige muita energia, tempo e é difícil controlar a resistência a esse tipo de pressão. No geral, ele acredita que é por volta dos 30 anos que esse pico é atingido – quando essas habilidades podem ser combinadas. Resident Evil 4, por exemplo, surgiu quando Mikami tinha 39 anos, momento que ele atingiu esse auge.
Depois dos 40 anos, o profissional disse que há um momento de reflexão, quando percebe-se quanta energia é gasta na criação de um jogo. Isso torna tudo mais difícil. Com essa perspectiva mais ampla, falhas são mais perceptíveis, então se os envolvidos quiserem algo perfeito, vão ter que pisar mais o pé no freio – e não lançar algo sem que pequenos defeitos sejam corrigidos. Já para os jovens, com menor experiência, há uma confiança instintiva de que tudo que vem sendo feito está indo muito bem. “De uma perspectiva de um veterano, vejo riscos com múltiplos finais, mas você acaba fingindo que não vê certas coisas.”
Ideias malucas jogadas em um projeto, cheio de inconsistências, podem terminar em um novo título no final. Já em contrapartida, algo que é desenvolvido por experientes, demanda mais trabalho, uma vez que eles passam mais tempo construindo algo perfeito ao invés de tomar outras decisões. No final das coisas, novos produtos andam mais rapidamente quando não se tem experiência.
Shinji Mikami cita como exemplo Resident Evil 2 (1998), que ficou nas mãos do diretor Hideki Kamiya – na época, um novato. O primeiro jogo atendia um “nicho” por ser mais centrado na questão do terror que RE2. Mikami diz que Kamiya tinha uma ótima visão e que ele poderia trazer essa perspectiva para o mercado de consumo massivo, com um jogo que adicionava mais entretenimento. Mikami conta ter prestado a atenção nisso desde o começo e que esse é o principal motivo do segundo jogo ser mais acessível ao público.
- Leia também: Hideki Kamiya dá detalhes do desenvolvimento de Resident Evil 2 e fala sobre a mudança em beta
Sobre Dino Crisis, Mikami diz que ele não era um projeto no começo e que haviam equipes trabalhando em novas iniciativas. O líder desse time deixou a Capcom de maneira repentina e os envolvidos eram direcionados a desenvolvimentos maiores, como um jogo de Dragon Quest, que leva em torno de 3-4 anos. Um dia, eles vieram até Mikami, que falou que ia carregá-los sob as asas. As ideias não fluíram tão bem coletivamente, mas um dia alguém comentou sobre fazer um jogo como a ilha de King Kong. Focaram em dinossauros e aplicaram um sistema similar ao de Resident Evil e… voilà.
Para Resident Evil 3: Nemesis (1999), Shinji Mikami diz que a ideia era fazer um jogo que agradasse os fãs que já acompanhavam a franquia, com um espírito mais de algo indie, não necessariamente numerado. Só que a Capcom pediu que o título se tornasse numerado, algo que forçou os desenvolvedores a mudar para satisfazer mais jogadores. Para Mikami, isso foi difícil, por que apesar do peso de ser um título numerado, a qualidade não refletiu essa situação.
Em comparação, Mikami fala que Resident Evil CODE: Veronica, que não é um título numerado, é que merecia mais esse posto. CODE: Veronica só não assumiu esse lugar por razões políticas entre a Capcom e (na época) a companhia que desenvolvia o console onde o título chegou primeiro – no caso, a Sega com o Dreamcast.
- Leia também: Conheça a história por trás de Resident Evil 1.9, que se tornou o clássico Resident Evil 3
Com Resident Evil 4, Mikami conta ter decidido focar na ação. Dead Space (2008) pegou essa referência de RE até chegar a um terceiro jogo, em 2013. Muita gente pergunta ao profissional se o estilo de RE4 foi intencional, mas esse “avanço” só surgiu durante o desenvolvimento, no qual a ação se tornou mais presente. O terror não é um caminho certeiro. Em um título comum, jogadores são colocados em um estado neutro, onde crescem para algo positivo e ganham satisfação – com o avanço da aventura. Mas nos de terror, há essa tensão, onde se começa por baixo e prospera. Essa estrutura impede que o título cresça além disso, uma vez que não há a maior parte das pessoas gostando do estilo.
Ainda sobre RE4, Shinji Mikami confessa que nem mesmo os membros em sua equipe eram fãs do estilo de terror e que eles trouxeram boas ideias, tornando o gosto pela ação mais forte. Não se podia tirar o terror, mas o foco foi em mirar e atirar, o que acabou deixando o primeiro elemento de escanteio. Mesmo com a visão de Mikami, muitos eram céticos no funcionamento em um Resident Evil que não priorizava o medo.
Ele faz um comparativo entre um diretor, que trabalha em campo e faz jogos até certo ponto, e um produtor, que está mais próximo do campo e bagunça as coisas quando começa a opinar sobre que direção ele deve tomar. No fim, as pessoas perguntam quem devem ouvir. Foi assim com Resident Evil 2, quando Mikami revela ter dado feedbacks e os desenvolvedores ficaram bravos em certo ponto tendo que ouvi-lo e a Hideki Kamiya ao mesmo tempo. Os dois tinham algumas visões conflitantes e chegou um momento que Mikami resolveu que era hora de não dizer mais nada.
Em seu caso, com RE4, Mikami diz que as opiniões surgiam entre a equipe e que ele julgava em que direção seguir, já que ele costumava acumular cargos de diretor e produtor, algo como ter “duas pessoas dentro de si lutando” para dizer o que estava certo ou errado. “Depois de Resident Evil 4, a franquia mudou em uma direção muito maior, uma vez que os filmes (live-actions) contribuíram muito para estabelecer Resident Evil como uma marca”, afirma.
- Leia também: Paul Anderson fala sobre protagonismo feminino, Resident Evil e Monster Hunter em painel
A partir desse momento, muitas pessoas já tinham ouvido falar de Resident Evil como uma marca e sabiam que se referia a jogos com temática assustadora. Cada jogo numerado tinha um diretor diferente, que misturava fórmulas diversas em cada um deles. Isso criou um legado, uma espécie de marca única. Só que há falhas, ou títulos que não foram tão bem, ou que se tornaram excepcionais. Um bom exemplo disso é Resident Evil 7, que mais do que criaturas, é focado nos sentimentos humanos. Talvez até mais do que a ação, é direcionado ao terror e os jogadores perceberam que é mais do que só matar inimigos.
Para Mikami, dá para fazer praticamente de tudo com Resident Evil com uma dose assustadora. Ele acredita que quando a Umbrella foi derrotada, parte da história acabou de certa forma, com a imagem de uma corporação que sempre planejava algo que poderia espalhar o terror entre as pessoas. Mikami vê que o terror é baseado no medo, na tensão que nos leva ao limite e em uma verdadeira “montanha-russa” para a mente. Quando escapamos, há uma sensação de alívio.
O medo a que ele se refere é mais como aquele que penetra no corpo das pessoas, como nos filmes Midsommar – O Mal Não Espera a Noite (2019) ou Corra! (2017). São histórias mais reais e críveis de serem acreditadas, baseadas no medo humano e inclinadas ao entretenimento. Isso é algo que Mikami classifica como uma tendência de algo que parece assustador depois de assistido.
Só que Mikami revela ser mais levado ao terror pelo modelo antigo. Algo como “o que aconteceria se essa criatura aparecesse?”, com o medo do que não é humano, com algo que não conhecemos, mas que ataca e mata, que nos machuca e que querermos fugir por estarmos apavorados.
Shinji Mikami diz que as criaturas são como um prato principal. Comparando com comida japonesa, a atmosfera seria o arroz. Não dá para removê-lo e o jogador teria acesso a ele. As criaturas fariam o papel dos pratos que o rodeiam. Não há uma regra da porcentagem do que pode ou não ser adicionado. Você dosa e prova para ver se não tem nada faltando, mas quanto mais elementos você adiciona, menos assustador ele tende a ficar.
E para você, leitor, o que um Resident Evil precisa ter em um próximo lançamento da franquia? Tem Resident Evil Village a caminho – esse bebe da água de RE7. Esse prato será servido quente, como um sucesso, ou frio?