As ações da Umbrella sob o olhar do Direito

Desde os longínquos anos de 1996, a saga Resident Evil tem cativado jogadores ao redor do mundo com sua mistura de terror, ação e narrativa envolvente. No centro desta trama está a Umbrella Corporation, uma megacorporação farmacêutica cujas ações desencadeiam consequências terríveis, levando pessoas a sofrerem horrores inimagináveis. Mas, e se olhássemos para as ações da Umbrella sob a perspectiva do Direito? Quais as repercussões jurídicas que a Umbrella sofreria no mundo real, mais precisamente perante a legislação brasileira?

As obras de ficção, sejam filmes, livros, animes ou jogos, oferecem fontes ricas de inspiração e reflexão para diversas áreas do conhecimento, incluindo o Direito. Dependendo da obra, estas narrativas podem servir como exemplos valiosos para pensar na aplicabilidade da legislação em cenários que, embora fictícios, refletem dilemas e desafios reais. Fazer estas conexões entre uma obra artística e uma disciplina como o Direito não apenas enriquece o aprendizado, mas também torna o estudo mais estimulante e prazeroso. Afinal, combinar sua profissão com algo que você ama é uma experiência incrível.

Aqui no REVIL, já realizamos uma análise de Resident Evil 2 sob a perspectiva de um policial e de um paramédico, explorando o realismo do jogo. Agora, chegou o momento de examinar as ações da Umbrella Corporation no enredo da saga Resident Evil, com foco em Resident Evil 2 e Resident Evil 3, e desvendar as consequências jurídicas que seriam aplicáveis.

Aliás, o conteúdo deste artigo é uma extensão do material desenvolvido para um vídeo no canal Bomba Jurídica no YouTube, que se dedica ao estudo do Direito Brasileiro de forma acessível e interessante. Enquanto o vídeo aborda certos pontos de maneira geral, este artigo aprofunda aspectos específicos, fazendo com que o conteúdo do vídeo e do artigo se complementem.

 

OS MONSTROS TOMARAM A CIDADE

De acordo com as tramas originais e reimaginadas de Resident Evil 2 e Resident Evil 3, os eventos ocorrem quase simultaneamente, envolvendo uma série de tragédias desencadeadas pela Umbrella Corporation. Em “Resident Evil 2”, o caos começa quando o T-Vírus, desenvolvido pela Umbrella, escapa de seu controle, contaminando a cidade de Raccoon City. O vírus transforma os habitantes em zumbis e outras criaturas monstruosas (armas biológicas) são liberadas na cidade, resultando em uma catástrofe sem precedentes.

Durante estes eventos, Leon Scott Kennedy, um policial em seu primeiro dia de trabalho, e Claire Redfield, que está procurando por seu irmão, Chris, se veem presos no meio desta desolação. Eles descobrem que a Umbrella está por trás de tudo e que os experimentos ilegais com o T-Vírus e o G-Vírus, liderados pelo cientista William Birkin em conjunto com outros funcionários, foram os responsáveis por desencadear a epidemia.

Enquanto isso, em “Resident Evil 3”, a protagonista Jill Valentine, uma ex-membro da força policial de elite S.T.A.R.S., tenta escapar de Raccoon City enquanto é perseguida por Nemesis, a arma biológica perfeita criada pela Umbrella para se vingar dos S.T.A.R.S. em decorrência do que aconteceu no primeiro jogo da saga. O game mostra que a Umbrella não apenas tem culpa em causar a proliferação destes patógenos perigosos, mas também enviou suas próprias forças paramilitares, a U.B.C.S., para encobrir seus crimes, eliminando sobreviventes e destruindo provas.

O terceiro jogo culmina com a destruição de Raccoon City por um míssil nuclear autorizado pelo governo dos Estados Unidos da América, numa tentativa de conter a propagação do vírus. No entanto, a responsabilidade moral e legal da Umbrella pelas mortes e pela destruição de uma cidade inteira é inegável, e seus atos levantam questões graves sobre os limites do poder corporativo e a responsabilidade perante a lei.

CONCEITOS INTRODUTÓRIOS

Diante destes eventos, fica evidente o quão devastadoras e moralmente repugnantes são as práticas da Umbrella Corporation. Esta megacorporação, movida por interesses escusos, desenvolve armas biológicas e comete inúmeras ilegalidades ao longo dos jogos, desde a elaboração de assassinatos e a produção de germes patogênicos até o planejamento de projetos eugenistas abomináveis.

O que mais se destaca nos jogos Resident Evil 2 e Resident Evil 3 são os ramos do Direito Constitucional, Direito Internacional e, sobretudo, o Direito Penal. Mas por que isso? Porque o cerne da saga Resident Evil é o enfrentamento contra as armas biológicas e a Umbrella Corporation, até então, é a principal responsável.

O Direito Constitucional é o ramo do Direito que trata das normas fundamentais que estruturam o Estado e estabelecem os direitos básicos e deveres dos cidadãos, além das garantias individuais e coletivas. Ele é responsável por proteger os princípios basilares da sociedade, como a liberdade, a igualdade e a justiça, estabelecendo limites para o poder estatal e assegurando o respeito à Constituição.

O Direito Internacional, por sua vez, é o ramo do Direito que regula as relações entre os Estados e as organizações internacionais, além de tratar dos princípios, direitos e deveres que transcendem as fronteiras nacionais. Ele abrange tratados, convenções e outros acordos que buscam promover a cooperação e a convivência pacífica entre as nações, assim como a proteção dos direitos humanos em âmbito global.

Já o Direito Penal é o ramo que define os crimes e as penas correspondentes, regulando a repressão e a prevenção de condutas consideradas lesivas à ordem social. Ele estabelece o que é considerado crime, quem pode ser responsabilizado por tais atos e quais são as consequências jurídicas para os infratores, sempre em consonância com os princípios constitucionais.

O Brasil, assim como diversas outras nações, ratificou a Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Estocagem de Armas Bacteriológicas (Biológicas) e à Base de Toxinas e sua Destruição, um tratado internacional de extrema importância. Esta norma jurídica, em seu Artigo I, estabelece que todos os países signatários se comprometem a jamais, sob nenhuma circunstância, desenvolver, produzir, estocar, ou adquirir e manter sob sua posse agentes microbiológicos, outros agentes biológicos ou toxinas, exceto para fins profiláticos, de proteção ou outros objetivos pacíficos. A Convenção proíbe também expressamente o uso destes agentes para fins hostis ou em conflitos armados, reafirmando o compromisso global com a paz e a segurança.

Assim, é evidente que a Umbrella Corporation está claramente violando este tratado internacional. Embora a Convenção sobre a Proibição de Armas Biológicas sirva como base para a legislação nacional dos países signatários, ela não define punições diretas para indivíduos e empresas que desenvolvem estas armas. No entanto, ao criar e usar o T-Vírus, a Umbrella infringe as diretrizes do tratado, que deve ser cumprido pelos Estados e, por consequência, por todas as pessoas físicas e jurídicas dentro destes países.

Em termos de Direito Internacional, o tratado funciona como um “contrato” entre as nações, proibindo os países signatários de desenvolverem armas biológicas. Aqueles que desobedecem enfrentam sanções da comunidade internacional. Isto significa que um indivíduo ou empresa – como a Umbrella – não sofrerá punições diretamente previstas no tratado, mas será sujeito às leis do país onde os crimes ocorreram, que no caso dos jogos, é a legislação estadunidense.

Na narrativa dos games, o vazamento do T-Vírus foi inicialmente um acidente, mas as consequências foram catastróficas: os cidadãos de Raccoon City se infectaram, transformando-se em zumbis. Agravando ainda mais a situação, a Umbrella deliberadamente libera outras armas biológicas, como o Nemesis e os Hunters, com o objetivo de testar estas criaturas na cidade para depois vendê-las. No caso específico do Nemesis, ele persegue Jill Valentine porque ela representa uma ameaça direta à Umbrella, devido ao seu envolvimento em investigações que remontam ao primeiro jogo da saga. Jill sabe demais, e a Umbrella está determinada a eliminá-la para evitar que seu envolvimento com estas armas seja descoberto. Estas ações ilustram a extensão da corrupção e da impunidade que a empresa busca manter a qualquer custo.

As armas biológicas representam um perigo imenso devido aos danos graves que podem causar. No jogo, embora seja fictício, vemos um caos devastador que ilustra o perigo real destas armas se usadas na vida real. No passado, o uso de armas biológicas já gerou impactos negativos sérios na saúde e no meio ambiente.

No Direito, a saúde e o meio ambiente são considerados bens jurídicos protegidos por leis para garantir o bem-estar e a ordem social. O Artigo 196 da Constituição do Brasil assegura o direito à saúde, enquanto o Artigo 225 garante um meio ambiente equilibrado. As armas biológicas, ao prejudicarem estes direitos, violam estas proteções constitucionais.

Nos jogos como Resident Evil, as armas biológicas são retratadas como monstros ou criaturas modificadas, criadas em laboratório para destruição ou controle. Na realidade, elas envolvem vírus ou outros agentes patogênicos manipulados para causar doenças ou mortes. Embora as representações no jogo sejam exageradas, elas levantam questões importantes sobre os riscos e as implicações do uso destas armas no mundo real.

Vamos imaginar então que os eventos retratados nos jogos Resident Evil se desenrolaram em território brasileiro. Suponhamos que a Umbrella Corporation seja, na verdade, a Corporação Guarda-Chuva e Cosméticos, e que Raccoon City seja conhecida, neste cenário hipotético, como Jaguacinitópolis, um município fictício localizado na região Centro-Oeste do Brasil.

ACIDENTE BIOLÓGICO EM JAGUACINITÓPOLIS

A lei brasileira não tem um crime específico que proíba produzir armas biológicas, contudo, os atos da Guarda-Chuva e Cosméticos de criar e usar armas biológicas podem ser enquadrados em crimes como lesão corporal, homicídio ou crimes contra o meio ambiente. Além disto, é possível processar a empresa, no âmbito do Direito Civil, por danos morais e materiais causados às vítimas.

Apesar disto, no Código Penal Brasileiro existe um delito que se aproxima da ideia de usar armas biológicas, que é o de causar uma epidemia. O Artigo 267 do Código Penal define como crime quem causar epidemia através da propagação de germes patogênicos (vírus, fungos, bactérias, enfim). A pena é de 10 a 15 anos de reclusão, e se resultar em morte, a pena é dobrada. Em casos de culpa, ou seja, quando a pessoa não teve a intenção de praticar o crime, a pena é menor, de 1 a 2 anos, ou 2 a 4 anos se resultar em morte.

Pois bem, considerando que todos os fatos foram devidamente comprovados ao longo do processo judicial contra a Guarda-Chuva e Cosméticos, ficou estabelecido que o cientista Guilherme Bueno, juntamente com outros empregados da empresa, desenvolveu vírus letais com o objetivo de criar armas biológicas. No entanto, devido à imprudência e outros fatores, este perigoso vírus, conhecido como T-Vírus, vazou dos laboratórios da Corporação e se espalhou gradualmente por Jaguacinitópolis, contaminando a água e infectando ratos e outros animais.

Aos poucos, os moradores começaram a se infectar com o T-Vírus, exibindo sintomas graves e rapidamente sobrecarregaram os hospitais e unidades de saúde do município, comprometendo o Sistema Único de Saúde local. É sabido que este vírus eventualmente transforma seres humanos em zumbis e, apenas com os fatos narrados até aqui, já é possível identificar a responsabilidade penal, no mínimo culposa, dos funcionários da Guarda-Chuva e Cosméticos.

Mas por que se considera um crime culposo e não doloso inicialmente? Isso ocorre porque Guilherme Bueno e os demais empregados da Corporação não tinham a intenção deliberada de espalhar o vírus pela cidade, ou seja, de causar uma epidemia. O incidente foi resultado de imprudência por parte dos funcionários e da empresa, que não adotaram as medidas necessárias para evitar a disseminação do vírus. Além disso, fatores ainda mais atrozes, como o assassinato arquitetado do cientista Guilherme por membros da alta cúpula da empresa, agravaram a situação.

Como Guilherme foi assassinado, ele não pode ser processado penalmente, pois a punibilidade se extingue com a morte do agente, conforme o Inciso I do Artigo 107 do Código Penal. Em outras palavras, no Direito Penal a punibilidade é a possibilidade do Estado de punir o autor de um crime e, quando este autor morre, esta possibilidade é automaticamente extinta, ou seja, não se pode processar alguém que já faleceu.

No entanto, os funcionários que trabalharam com Guilherme e tiveram envolvimento na criação e proliferação do T-Vírus podem ser responsabilizados criminalmente. Eles podem ser condenados pelo crime de causar uma epidemia na modalidade culposa, com pena de detenção de 2 a 4 anos, considerando as inúmeras mortes resultantes da disseminação do T-Vírus.

No entanto, sabe-se que, posteriormente, a Guarda-Chuva e Cosméticos deliberadamente liberou várias armas biológicas em Jaguacinitópolis com o intuito de testá-las em combate, além de cometer outros atos ilícitos que não vêm ao caso no momento. A partir deste ponto, todos os empregados da Corporação envolvidos na autorização para a liberação destas armas passaram a cometer o crime de epidemia, uma vez que estas criaturas, além de causarem mortes e outros danos, estão indiretamente espalhando o T-Vírus pela cidade, agravando ainda mais a situação.

Sendo assim, todos os envolvidos, provavelmente funcionários do alto escalão da empresa, poderiam ser penalizados com penas próximas ao limite máximo permitido pela legislação brasileira, ou seja, de 20 a 30 anos de reclusão. Cadeia neles!

Além disto, é importante destacar que, em um caso hipotético como este (e ainda bem que é apenas hipotético), outros ramos do Direito também seriam aplicáveis, como o já mencionado Direito Civil, o Direito Administrativo e o Direito Ambiental.

Normalmente, as consequências criminais não se aplicam diretamente às pessoas jurídicas, salvo exceções específicas, como crimes ambientais ou situações previstas na Lei Anticorrupção. Contudo, a Guarda-Chuva e Cosméticos provavelmente enfrentaria sanções administrativas severas, incluindo multas, interdição de suas atividades e até mesmo a dissolução obrigatória da empresa, visto que a Corporação tem como verdadeiro objetivo o desenvolvimento de armas biológicas, uma prática absolutamente criminosa.

Certamente, a dissolução da Guarda-Chuva e Cosméticos seria uma consequência inevitável, como demonstrado na trama de Resident Evil 4, onde a Umbrella Corporation enfrenta a sua falência e colapso. A ficção nos mostra que práticas criminosas deste porte têm consequências drásticas e inevitáveis.

A UMBRELLA ESTAVA ACABADA

Diante de tudo isto, vemos como o Direito Brasileiro se desdobra para lidar com um caso tão complexo. É fundamental reconhecer que o Direito Penal não é a única área capaz de oferecer soluções para uma situação concreta.

O Direito Penal é frequentemente considerado como a ultima ratio, ou seja, a última instância a ser acionada quando todas as outras áreas do Direito falharam em resolver um problema. Cada ramo do Direito possui sua própria função e jurisdição, aplicando punições conforme a natureza do ato ilícito, seja ele cometido por pessoas ou empresas. No final das contas, ninguém fica impune: o rigor da lei deve ser aplicado de maneira justa e equitativa a todos, garantindo que as consequências sejam proporcionais às ações praticadas e que a justiça seja devidamente realizada.

Vale lembrar que esta análise é uma simplificação das coisas, já que a legislação brasileira tem muitas minúcias que precisam ser examinadas com cuidado. A proposta deste artigo foi dar uma visão geral das repercussões jurídicas criminais e de outras possíveis consequências para a Guarda-Chuva e Cosméticos.

Certo, mas imagina só: se o governo brasileiro tivesse armas nucleares e decidisse usar um míssil para explodir a pacata Jaguacinitópolis, isto seria legalmente permitido? Bom, esta é uma conversa para outro dia!

Se você quer se aprofundar mais nestes e em outros temas fascinantes, não deixe de conferir o canal Bomba Jurídica no YouTube. Lá, questões jurídicas intrigantes são exploradas, além de discussões de como o universo fictício de diversas obras se relaciona com a realidade jurídica brasileira.

Colaborou com as ilustrações deste artigo: Ricardo Andretto