O gênero Survival Horror, Resident Evil 4 e o horror antropológico

Quando foi lançado em 2005, Resident Evil 4 inaugurou diversas tendências e novidades que inovaram o mercado desde o seu lançamento. Em meio a tantas novidades, a série causou estranhamento ao apresentar uma gameplay voltada para a ação.

Mas será que o elemento de horror ficou mesmo de fora de Resident Evil 4? Ou será que ele se fez presente, mas de formas diferentes?

A primeira geração de jogos de Resident Evil era conhecida por seus elementos de terror de sobrevivência com os jogadores precisando gerenciar cuidadosamente seus recursos e escolher entre lutar ou fugir de inimigos ameaçadores. Porém, além dos elementos de gameplay que definem o estilo do game, a atmosfera de terror também é criada através de elementos narrativos e visuais que incluem o body-horror ou horror corporal com a transformação de humanos em zumbis e monstros mutantes e o gore.

O terror corporal é um elemento de terror que se concentra no corpo humano e em sua vulnerabilidade. É um tipo de medo que se relaciona com o desconforto e a repulsa que sentimos em relação à transformação do corpo humano. O terror corporal geralmente envolve cenas que mostram mutilações, deformidades, doenças, infecções e outros eventos que afetam o corpo humano.

Por outro lado, o gore é um elemento de terror que se concentra em cenas gráficas de violência extrema, como desmembramentos, decapitações, mutilações e outras formas de violência física.

Tanto o terror corporal quanto o gore são frequentemente usados em narrativas de terror para aumentar a tensão e o medo. Eles funcionam ao despertar a repulsa e o desconforto do espectador ou leitor, levando-o a sentir uma sensação de vulnerabilidade e medo. O objetivo é fazer com que o espectador se sinta desconfortável, inseguro e vulnerável.

Estes dois ingredientes que são a base de obras de terror em diferentes mídias somados aos elementos de sobrevivência deram origem ao tão conhecido nome do gênero Survival Horror ou Horror de Sobrevivência.

Em Resident Evil 4, a franquia subverte essas premissas e transforma o clássico Survival Horror em algo diferente do que havia sido oferecido até aquele momento.

RE4 manteve todos os elementos de gore e horror corporal de seus antecessores, porém, com uma jogabilidade completamente nova sem a antiga preocupação com economia de recursos e onde o jogador tem uma visão ampla do cenário e a pode atirar em qualquer parte do corpo dos inimigos com munição quase ilimitada, o jogador se sente quase nada vulnerável diante da situação em que nos encontramos com Leon S. Kennedy; quase como se em Resident Evil 4 não fosse mais um jogo de horror.

Mas será que o horror foi realmente eliminado de Resident Evil 4 com a introdução de um estilo de gameplay voltado para a ação?

Um tipo diferente de horror

Os elementos de horror frequentemente exploram aversões naturais e medos instintivos que estão presentes em nossa psique. Por exemplo, a aversão ao escuro e a sensação de ser observado são medos que são comuns a muitas pessoas. O horror usa esses medos para criar narrativas que nos colocam em situações extremas, onde nossa sobrevivência e segurança são ameaçadas. Além disso, o horror muitas vezes aborda temas que são tabus na sociedade, como a morte, a violência, a perversão e o desconhecido. O objetivo do horror é sempre criar uma sensação de tensão e desconforto, levando o público a experimentar uma emoção intensa.

Seja em sua versão clássica ou em sua versão refeita em 2023, Resident Evil 4 provoca este desconforto característico do horror através da exploração do medo do desconhecido e da estranheza que isso nos causa. Ele faz isso através do uso de um tipo muito específico de horror; o Terror Antropológico.

O terror antropológico é um subgênero de terror que se concentra em explorar os medos e inseguranças que o desconhecido causa em nossa compreensão do mundo e de nós mesmos como seres humanos. Ele se concentra em narrativas que envolvem culturas, mitos e rituais estranhos e desconhecidos que desafiam nossa compreensão do mundo.

Leon, ao se aproximar da vila e ser atacado por inimigos de aparência humana mas cujo comportamento nós não conseguimos compreender, causa desconforto no jogador de primeira viagem. O jogo faz um ótimo trabalho em explorar a tensão que surge quando diferentes culturas entram em contato. Leon, que é um homem norte americano habituado à vida urbana, está numa missão de resgate num ambiente rural no meio do nada num país estrangeiro que ele não fala a língua e onde se depara com hordas camponeses hostis que o atacam violentamente sem razão aparente.

Logo de cara, o desconforto de lidar com uma situação onde o jogador não entende o que está acontecendo é algo digno de nota. Ambos jogos são muito eficazes em transmitir um sentimento de deslocamento e solidão enquanto o jogador luta para sobreviver em meio a um grupo de inimigos desconhecidos e estranhos. Isso gera tensão e ansiedade no jogador, que se sente ameaçado por um ambiente hostil e desconhecido.

Fanáticos causam medo

O estranhamento cultural se aprofunda muito mais quando chegamos ao castelo de Salazar e somos introduzidos aos membros de Los Iluminados: um culto de fanáticos de túnicas estranhas, cabeças raspadas e armas medievais que dão glórias a um “Deus Parasita” que curte explodir a cabeça de seu servos depois que o sol se põe.

Novamente, temos a estranheza como elemento chave na criação de uma atmosfera de medo e tensão. O contato com práticas religiosas tidas como exóticas desafia nossa compreensão e em alguns casos desafia nossas noções de moralidade e ética.

Essas práticas religiosas exóticas geralmente envolvem rituais, crenças e costumes que são diferentes daquilo que estamos acostumados a ver em nossa própria cultura. Eles podem envolver o uso de símbolos e objetos estranhos, como máscaras, trajes e pinturas corporais, que podem parecer perturbadores e misteriosos. A incompreensão desses costumes e rituais e sobretudo a incompreensão a respeito das intenções deste culto pode aumentar o medo e a tensão na narrativa, deixando o jogador desconfortável e inseguro.

Resident Evil 4 pode ter inovado ao apresentar uma jogabilidade mais voltada para a ação do que para o horror. Mas isso não significa que o elemento de horror tenha sido deixado de lado na franquia. De fato, o jogo manteve elementos de gore e horror corporal. No entanto, Resident Evil 4 subverteu as premissas do gênero survival horror, oferecendo uma nova jogabilidade e um tipo diferente de horror: o terror antropológico. Mesmo que o jogador tenha passado pelo jogo à lá John Wick atirando destemidamente em tudo que se move, aquele sentimento de estranhamento e aquela pulga atrás da orelha que fica conosco até que a gente saiba o que raios está acontecendo comprovam que o horror estava lá o tempo todo.

Referência que surgiu como fonte de inspiração deste artigo, via Quadrinhos na Sarjeta: O QUE É TERROR ANTROPOLÓGICO? Sacrifícios humanos, xenofobia e Sergio Toppi

Colaborou com este conteúdo: Ricardo Andretto