Tendo em vista a onda de remakes/remasters que a franquia Resident Evil vem ganhando desde 2019 para cá, assim como acontece em outras franquias como Alone in the Dark, Silent Hill e Dead Space, uma coisa que percebemos é que, além da adaptação da jogabilidade e gráficos para os dias atuais, há também o movimento de se “atualizar” o enredo para que ele “faça sentido” quando (re)contado nos dias de hoje. Assim, inevitavelmente, assuntos sensíveis que foram abordados na época que o jogo original fora lançado acabaram por receber uma “nova roupa” nestas repaginações (lembrando que os tempos à época eram outros). Entretanto, fica aqui o questionamento, essa “recontagem” é mesmo necessária?
Com o passar dos anos, a sociedade da qual estamos inseridos também evoluiu, seja por conta do progresso tecnológico que aumentou a velocidade que a informação chega a todos os cantos, levando conhecimento a quem antes não tinha acesso, ou porque a nossa própria percepção como indivíduos pensantes e em constante interação com outros nos fazem perceber que pensamentos e comportamentos antes “aceitos” não cabem mais na sociedade.
O ser humano está em constante aprendizado e também é propenso a mudar de opinião, a evoluir. Assim, passamos a ter um novo olhar sobre as obras que nos apresentavam um outro recorte temporal que já vivemos, assim acabamos por adotar uma visão mais crítica sobre elas e percebemos que esses recortes poderiam ter ideias racistas e intolerantes, por exemplo. No caso específico do racismo, movimentos sociais como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português) surgiram como em resposta, este ao brutal assassinato de George Floyd durante uma abordagem policial da polícia norte-americana em 2020, provocando repercussão global.
Isto posto, talvez fosse o caso de refletir que, talvez, Resident Evil 5 seja o único jogo da franquia que não deva ganhar um remake por ter sido considerado um título racista na época de seu lançamento. Essa foi a chocante afirmação que incendiou o debate sobre o remake do próximo título numerado da franquia Resident Evil, na fila para receber sua versão reimaginada (e já confirmada para quem sabe como o Separate Ways de Resident Evil 4 termina). Curiosamente, o mesmo veículo de imprensa que publicou essa opinião controversa elogiou copiosamente o título quando ele foi lançado em 2009, dando uma nota 9 ao game.
Nós do REVIL, no entanto, não acreditamos que haja uma censura “do bem”. Acreditamos que a história é uma sucessão de fatos complexa, repleta de momentos sombrios que refletem as falhas e os preconceitos da humanidade. Ocultar partes dessa história, por mais desconfortáveis que sejam, não apenas distorce a realidade, mas também nos priva da oportunidade de aprender com os erros do passado.
No contexto atual da indústria audiovisual, como a do cinema e de games, a tentativa de apagar ou reescrever conteúdos pode ser um erro grave que abre espaço para que empresas e instituições evitem prestar contas por suas ações passadas, especialmente quando essas ações são marcadas por racismo ou intolerância. Sob o pretexto de uma suposta boa intenção, essas entidades podem realizar “queimas de arquivos” de obras ou registros que consideram controversos, sem realmente enfrentar as consequências de seu passado racista. Basicamente, usam o rótulo de modernização de seus títulos, mas optam por jogar no esquecimento seu legado (e tudo incluso nele), como se passar uma borracha no seu passado os absolvessem de seus erros e a ficha ficasse limpa como se nunca manchada estivesse.
Além disso, a prática de apagar a história cria um vácuo que pode ser facilmente explorado para distorcer a verdade e perpetuar mitos prejudiciais. Quando as empresas decidem suprimir suas produções e registros de comportamento racista, estão, na verdade, privando as gerações futuras da oportunidade de aprender com os erros do passado. Isso não apenas compromete a integridade histórica, mas também prejudica os esforços para construir uma sociedade mais justa e igualitária.
Tendo toda essa reflexão em mente, a equipe se reuniu para uma troca de ideias sobre o fato de que Resident Evil 5 poderia sim receber uma versão remake e como a Capcom poderia fazer adaptações ao game de modo a representar o continente africano e sua população nativa sem correr o risco de recorrer a estereótipos desrespeitosos das populações nativas e das diversas etnias que habitam essa região do mundo.
Expressões faciais e “humanização” dos inimigos
Os seres humanos têm uma habilidade incrível de se conectar com rostos. Isso acontece porque nosso cérebro possui neurônios espelho, que ajudam a entender e imitar as emoções dos outros. Quando vemos uma expressão facial, como um sorriso ou uma cara de tristeza, esses neurônios fazem com que sintamos algo parecido, criando empatia. As expressões faciais têm tanto poder sobre nós que podem mudar nosso humor ou até nos influenciar a agir de forma diferente. É como se o rosto de outra pessoa fosse uma janela para suas emoções, e nosso cérebro instintivamente tenta entrar em sintonia com elas.
No Resident Evil 5 original, os inimigos possuem expressões mais realistas em relação ao seu antecessor, já se aproveitando do poder gráfico da sétima geração nunca antes visto na indústria dos videogames. Esse realismo acaba por “humanizar” os zumbis do jogo, conhecidos como Majinis, podendo gerar uma sensação de desconforto no público quando se considera a situação a qual foram expostos e que não há outra maneira de lidar com isso a não ser adotar postura defensiva, já que, basicamente, o personagem responde à agressividade causada pelo agente biológico do game: Uroboros. Além disso, ao longo do jogo percebemos que os infectados exibem expressões faciais que variam entre a raiva, medo e até mesmo dor.
O Resident Evil 5 remake deve ter…
O remake de Resident Evil 4, lançado em 2023, apresentou uma solução para essa questão no design dos infectados por Las Plagas. Ao contrário dos Majinis de Resident Evil 5 clássico, os Ganados de RE4 Remake ganharam um olhar vago e sem expressões convincentes. A face dos infectados, embora possua traços humanos reconhecíveis, tem um olhar inexpressivo como se ali habitasse uma casca vazia e aquele corpo agora é controlado inteiramente pelo parasita que ali habita. Seu olhar atravessa o personagem sem nenhum tipo de humanidade e dando tranquilidade para o jogador puxar o gatilho sem culpa. Embora também vítimas das circunstâncias, o povo do vilarejo, do castelo e os trabalhadores da ilha estão basicamente na mesma situação dos Majinis (dadas das devidas proporções). Foram, de certa forma, “desumanizados” no remake do RE4, já que a ausência de quaisquer reações dos inimigos “autoriza” Leon S. Kennedy a fazer o que for preciso para cumprir sua missão.
Vale lembrar que durante os eventos que culminaram na destruição de Raccoon City, o sentimento de escapar com o de sobreviver eram conflitantes o tempo inteiro (intensificado nas reimaginações). Isso foi, de certa forma, mantido nas adaptações em CGI da franquia. Porém, embora o passar do tempo proporcione amadurecimento, o remake do 4 denota que Leon nem sequer se importa mais com a situação completamente esdrúxula que está em sua frente, coisa que sua versão mais jovem ainda passa essa sensação de forma sutil.
Em um possível remake de Resident Evil 5, seria interessante preservar o conflito emocional e o desconforto presentes no jogo original, especialmente ao revisitar uma situação tão traumática. Caso a Capcom opte por seguir a mesma abordagem que usou no remake de Resident Evil 4 – onde os Ganados perderam traços que os tornavam mais humanizados -, seria crucial garantir que os Majinis mantenham a atmosfera de tensão e desconforto do original. Isso ajudaria a reforçar a sensação de que cada confronto é decisivo, como se fosse o último, preservando a intensidade e o impacto emocional da narrativa.
Outra coisa interessante em se ter em mente em um remake do RE5 seria justamente a aparência dos Majinis em si. Todos os tipos de Majinis devem estar presentes no remake, com todas as suas características que já conhecemos, mas com a devida atenção caso haja a inclusão/mudança de alguns tipos de Majinis, como a inclusão da monja entre os cultistas no RE4, uma escolha interessante e bem-vinda, por sinal. A principal preocupação aqui paira em um possível whitewashing que pode ocorrer nos Majinis para que a história se “adapte” à 2024/2025 (ou no ano que ele for lançado).
Mas e aí, dá para um remake do RE5 e ainda ser de bom tom?
Com o exposto aqui, é possível que um provável remake do RE5 alcance as expectativas que temos sobre ele, além de respeitar o legado que traz, sem deixar de mencionar que desde Marvin Branagh do Resident Evil 2 não tínhamos um personagem negro em RE. Apesar das polêmicas que o jogo causou em 2009, a franquia recebeu dois personagens que, com certeza, são lembrados com muito carinho: Sheva Alomar e Josh Stone. Torcemos muito para que tenham suas histórias e personalidades aprimoradas, assim como Carlos Oliveira e Luis Sera em suas versões repaginadas.
Por fim, devemos ter em mente que a história está aí para ser lembrada e lições devem ser aprendidas, mas nunca devem ser apagadas/modificadas para se adaptar ao momento que são contadas. RE5 se passa na África, numa região pobre, humilde, culturalmente rica e isso tudo não pode ser desconsiderado. Logo, embora incorra novamente na polêmica de seu lançamento, os habitantes de Kijuju devem ser retratados da forma como são: como o povo negro que é, com todas as suas características que estamos acostumados. Mas vale lembrar que a situação na qual o enredo se desenrola é um recorte da história e, mesmo que acabe por interseccionar em temas sensíveis, não há porque se esquivar do debate.
O RE5 pode ser considerado um jogo racista? Talvez. Mas a mesma lógica deve ser aplicada a qualquer jogo que se passa na 2ª Guerra Mundial se seu personagem é um soldado da Alemanha, não? O fato de um jogo mostrar um recorte específico de algum momento da história no qual a posição do protagonista não seja a mais aprazível ao jogador, não significa necessariamente que a empresa coaduna com aquele posicionamento.
O importante é entender que aquilo aconteceu, faz parte da história e que a sociedade evolui ao longo dos anos. É aprender com os erros e seguir em frente!
Resident Evil 5 está disponível para PlayStation, Xbox e PC (Steam).