Detalhes sobre o desenvolvimento do clássico Resident Evil 3 foram divulgados recentemente por Alex Aniel, um conhecido fã da franquia. Ele postou uma prévia de um conteúdo que compõe o livro “An Itchy, Tasty History of Resident Evil” – o material vai estar disponível em forma impressa depois de bater meta de financiamento no site Unbound. O conteúdo, divulgado no site Polygon, confirma o que comunidade já sabia: de que RE3 seguiu o sucesso de RE2, e que inicialmente seria um spin-off (dado ao reaproveitamento de cenários). Confira a partir daqui detalhes traduzidos do material, antes disponível somente em inglês. Confira também um resumo deste artigo em vídeo no nosso canal do YouTube:
A década de 90 foi de constantes mudanças com a evolução tecnológica para as companhias de jogos. A Capcom autorizou vários projetos seguindo o sucesso de Resident Evil 2, cada um a seu propósito. Resident Evil 3, inicialmente, foi dado ao diretor de RE2, Hideki Kamiya. Só que as ambições de Kamiya iam além do que a tecnologia oferecia para a época. “Eu acredito que Resident Evil 2 representou tudo que eu consegui alcançar para um jogo Survival Horror no [primeiro] PlayStation. Minha visão para um novo jogo era fazer algo mais provocador. Por isso eu decidi fazer Resident Evil 3 para o PlayStation 2“, diz Kamiya. Só que o lançamento do PlayStation 2 atrasou mais de dois anos depois do desenvolvimento de RE2 – então esse planejamento mudou, obviamente.
Outro projeto que recebeu sinal verde na época foi Resident Evil CODE: Veronica, que começou a ser desenvolvido no Dreamcast. A ideia da Capcom era também portar Resident Evil 2 ao Sega Saturn, como aconteceu com o primeiro jogo, mas como os desenvolvedores não conseguiram uma solução viável – e dado ao relacionamento amigável com a Sega – eles cancelaram e resolveram fazer o suporte ao novo produto, Dreamcast, que tinha mais potência para o novo jogo. Apesar de CODE: Veronica não ter Resident Evil 3 no nome, a Capcom tinha a intenção de que fosse uma continuação direta de RE2.
A escolha pelo subtítulo foi por conta da guerra entre consoles. “A ideia era manter jogos numerados na Sony e usar diferentes para os produzidos para Sega e Nintendo“, conta Yoshiki Okamoto, gerente geral da Capcom na época. Especificamente sobre a Nintendo, a Capcom se utilizou de técnicas de compressão para trazer Resident Evil 2 para o Nintendo 64. Isso fez com que Okamoto também recebesse sinal verde para a produção de Resident Evil 0 no aparelho, que assim como CODE: Veronica, teria uma história com amarras para os outros jogos da franquia.
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Em determinado período de 1998, a Capcom então tinha Resident Evil em desenvolvimento para PlayStation 2, Dreamcast e Nintendo 64. Foi nesse período que RE2 alcançou a marca de quase 5 milhões de jogos vendidos. Dado a demora do PS2 chegar ao mercado (só foi lançado em 2000) e ao trabalho a mais que os produtores teriam que ter para comprimir RE Zero, a Capcom teve que ver o que fazer para manter a franquia em evidência. Entram em cena as mentes de Okamoto e Shinji Mikami. “A Capcom não poderia esperar pelo lançamento do PlayStation 2. A companhia queria lançar um spin-off durante a transição entre o PlayStation e o 2″, lembra Mikami. Por isso, além dos outros jogos para PS2, Dreamcast e Nintendo 64, um jogo adicional recebeu sinal verde no PlayStation. Esse terceiro jogo recebeu o título de Resident Evil 1.9.
Resident Evil 1.9 seria um projeto diferente de RE e RE2. Dado que o título surgiu somente para preencher o espaço entre o lançamento do PS1 e PS2, o projeto tinha que ser desenvolvido em um tempo menor e com um orçamento menor. Yoshiki Okamoto deu prazo para que a entrega acontecesse em um ano do projeto. Como os outros funcionários estavam ocupados, RE 1.9 foi construído por jovens e menos experientes da equipe – inclusive freelancers. Como se tratava de um spin-off, a Capcom permitiu algumas experimentações, mas sem pisar no calo de projetos mais ambiciosos, como o de Hideki Kamiya.
Mikami escolheu Kazuhiro Aoyama para conduzir Resident Evil 1.9. Ele havia trabalhado em RE e RE2 com alguns elementos. Com profissionais envolvidos em outros projetos, Mikami também deu a chance para um novato escrever o cenário de RE 1.9, Yasuhisa Kawamura. “Eu queria usar a mesma linha do tempo de Raccoon City e Resident Evil 2. Só que nós não planejávamos ter qualquer ligação com qualquer outro Resident Evil“, confessa Kawamura. O foco inicial girava em torno de uma história com três diferentes mercenários da Umbrella. Ia se passar antes de RE2, o que justificaria o uso do 1.9. Isso transformaria o jogo em um prequel. Daria a oportunidade aos jogadores de vislumbrar o apocalipse zumbi antes de Leon S. Kennedy e Claire Redfield chegarem na cidade.
Com um orçamento apertado, Kazuhiro Aoyama não tinha como usar uma nova engine ou fazer algo ambicioso. Para manter se manter no que era previsto, decidiram reaproveitar a engine gráfica de Resident Evil 2, junto com muitos dos conteúdos prontos – controles praticamente inalterados, mesmo designs de gameplay, resolução de puzzles, portas trancadas e matança de zumbis. Para dar a sensação de continuidade, Aoyama colocou um pequeno número de salas da Delegacia de Polícia de Raccoon no jogo, oferecendo easter egg para os fãs mais hardcores. O time de Resident Evil 1.9 só tinha recursos para criar poucos cenários, além do que já existiam no outro jogo. O tamanho dos cenários era pra ser menor que o primeiro Resident Evil ou RE2.
Algumas mudanças foram feitas no sentido dos cenários por Aoyama para dar pequenas, mas notáveis alterações no gameplay e deixar as coisas frescas sem derivar do original. Ele decidiu produzir o jogo na linha mais de ação. Foi Aoyama, por exemplo, o responsável por “The 4th Survivor” minigame em Resident Evil 2. Resident Evil 1.9 deu a oportunidade para aprimorar essa fórmula.
Pela primeira vez na franquia, jogadores poderiam criar vários tipos de munição mixando pólvoras. Zumbis seriam mais rápidos e agressivos, aparecendo em grandes números. Aprimoramentos feitos à engine atual de Resident Evil permitiram que o encontro com zumbis fosse melhorado. O sistema de esquiva foi implementado, com a possibilidade também de empurrar inimigos. Algumas localizações de itens, passwords e resolução de puzzles foram randomizadas para mudar a cada novo jogo.
Yasuhisa Kawamura também veio com a ideia de seleção de caminhos “ao vivo” durante o jogo, onde jogadores poderiam escolher entre duas diferentes opções o que poderia acontecer, alterando a história em determinadas situações. Isso tornaria o jogo único se comparado aos outros jogos Resident Evil. “Essas novas adições foram pensadas para dar ao jogo um valor maior no replay. A ideia era que os jogadores pudessem completar o jogo em apenas uma jogada, como um jogo de arcade”, explica Kawamura. Por ter elementos randomizados e pequenas diferenças entre cenas, os jogadores se encorajariam a voltar e jogar uma segunda, terceira, quarta e até oitava vez – quantidade mínima necessária para desbloquear todos os segredos.O elemento mais notável em nível de criaturas foi “Nemesis“. Originalmente destinado a ser algo totalmente diferente – se assemelhando uma criatura de bolhas ao estilo do filme “A Bolha Assassina” (“The Blog“, em inglês) de 1958, ele se tornou um inimigo agressivo que poderia facilmente derrubar os personagens, além de ter uma voz monstruosa e perturbadora. Nemesis também tinha uma característica diferente importante em relação aos outros inimigos, podendo passar por certas portas para perseguir os jogadores e podendo matá-los com um só golpe.
Os produtores precisavam de algo que pudesse se diferenciar dos demais jogos que podiam ter múltiplos chefes, enquanto as limitações do desenvolvimento de Resident Evil 1.9 não permitiam. Algumas aparições de Nemesis estavam no script, outras foram de forma aleatória, também contribuindo para o fator replay. Além de Nemesis, há também a larva gigante Grave Digger que também conta como um chefe – totalizando um total de dois grandes desafios apenas.
Por ser um spinoff, Kazuhiro Aoyama e Yasuhisa Kawamura não tinham a intenção de adicionar nenhum protagonista dos dois primeiros jogos e sim focar em novos. Todos os rascunhos conceituais originais mostravam os mercenários Carlos Oliveira, Nicholai Ginovaef e Mikhail Victor. Só que em uma das fases de desenvolvimento, houve uma mudança na história de Resident Evil CODE: Veronica, o que permitiu que Jill Valentine fosse incorporada ao projeto. “A história inicial de Resident Evil 1.9 era pra ser só sobre uma fuga da infectada Raccoon City, mas depois de discussões com [Mikami] e [Aoyama], ficou decidido que ao invés de introduzir um novo personagem, Jill Valentine teria o papel principal”, Kawamura detalhou ao site Project Umbrella. A mudança imediatamente deu mais legitimidade ao spinoff, dado a popularidade de Jill com os fãs. Também beneficiou o jogo ao dar uma amarra direta ao primeiro jogo da franquia. Junto com Nemesis, Jill seria um importante elemento na identidade do jogo.
O desenvolvimento de Resident Evil 1.9 foi livre de problemas maiores que cercaram os dois primeiros títulos da franquia. Aoyama tinha como visão trazer um jogo ortodoxo e ao mesmo tempo único em algumas situações. Graças à visão do time e a engine de Resident Evil 2, o jogo nunca correu o risco de ser cancelado ou refeito. O jogo, no entanto, sofreu mudanças drásticas no seu final de desenvolvimento. Resident Evil 1.9 era para se passar antes de Resident Evil 2, mas depois sofreu mudança em sua história e ganhou o apelido de “Resident Evil 1.9 + 2.1“.
É claro que, pensando no marketing, o nome não colaria no mercado. Então, o jogo recebeu o título de “Biohazard: Last Escape” para o mercado asiático e “Resident Evil: Nemesis” no Norte Americano e Europa. A Capcom entendeu que os subtítulos casavam com o jogo com duas referências diferentes, mas que se conectavam entre si. Tinha o que se referia ao vilão, Nemesis, e à última fuga (“Last Escape“, em inglês), de Jill. Os nomes diferentes são propositais, por conta de “Nemesis” não ser comum no Japão na época.
Pouco tempo depois, Aoyama foi chamado para uma reunião com seus chefes, Yoshiki Okamoto e Shinji Mikami. Após três dias de discussões, Okamoto decidiu que “Resident Evil: Nemesis” faria parte da franquia principal, e ele adicionou o “3” na frente dos títulos, que ficaram: “Biohazard 3 Last Escape” e “Resident Evil 3: Nemesis“. “O jogo era pra ser um spin-off, então eu segui essa linha durante o desenvolvimento. Eu não esperava que ele se tornasse Resident Evil 3“, diz Aoyama.
Mikami, que acompanhava algumas etapas do desenvolvimento a distância como produtor, explicou que a “ideia principal era torná-lo um Resident Evil no estilo ‘indie'” – o termo foi usado para apontar que RE3 poderia ser como uma banda de garagem, que produz música diferente das grandes produtoras. “O jogo desenvolvido por Aoyama deveria atingir fãs de Resident Evil da cena underground, que não se importavam se o título seria estranho ou excêntrico”, explica Mikami. No entanto, Aoyama e Mikami tinham preocupações pelo jogo ter numeração – o título poderia parecer muito curto e diferente do que os fãs esperavam. Se a Capcom não fosse cuidadosa, tudo poderia ir por água abaixo.
Estava muito tarde para refazer o jogo, e o time de Aoyama tinha apenas dois meses para adicionar conteúdo e estender a jogabilidade. “Okamoto pediu que nós adicionássemos mais conteúdo para que o jogo pudesse ser maior”, diz Aoyama. O jogo era pra terminar na Clock Tower depois de um encontro com Nemesis. E foi aí que duas novas áreas foram adicionadas: Raccoon City Park e Dead Factory, assim como outras áreas foram expandidas.
No fim, o conteúdo do jogo não teve uma mudança drástica, e eles conseguiram tornar o jogo ainda mais longo do que ele era pra ser. A estimativa de Aoyama é que Resident Evil 3 ficou 30 minutos mais longo – tudo com apenas dois meses disponíveis, já que atrasos poderiam atrapalhar os planos da Capcom com outros jogos, como Resident Evil CODE: Veronica. Aoyama tem uma teoria por que a companhia decidiu transformar seu spin-off no “próximo jogo Resident Evil“. “Se eu me lembro bem, a Capcom queria se tornar uma empresa de capital aberto durante o ano fiscal de 1999. A companhia precisava de um título forte para ganhar a confiança do investidor. Eles imaginaram que um novo jogo numerado de Resident Evil poderia facilitar o alcance desse objetivo”, revela Aoyama.
Yasuhisa Kawamura vai além e diz que tinham fatores além do controle de sua equipe. A de Kamiya, por exemplo, que estava desenvolvendo o “Resident Evil 3” para o PlayStation 2, precisou interromper o processo devido a mudanças de direção. “A equipe de Kamiya foi obrigada a entender o processo de design para o PlayStation 2. Isso quer dizer que os fãs teriam que esperar vários anos para a próxima sequência, algo que a Capcom queria evitar. Também era inaceitável que um jogo de Kamiya fosse menos do que perfeito em qualidade e, além disso, era impensável apressar o desenvolvimento em um novo hardware como o PlayStation 2“, diz Kawamura em entrevista ao Project Umbrella.
Depois que o projeto de Aoyama virou Resident Evil 3, o de Kamiya foi renomeado como Resident Evil 4 (não houve mudanças para CODE: Veronica). Só que a visão de Kamiya foi além dos limites de um jogo da franquia Resident Evil, e esse “RE4” se tornou Devil May Cry, que esse sim foi lançado no PlayStation 2. O “Resident Evil 4“, como todos conhecemos, chegou depois primeiro ao GameCube. E o Resident Evil Zero, em algum momento desse turbilhão, foi cancelado para Nintendo 64, também sendo transferido ao GameCube.
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No fim, Resident Evil 3: Nemesis se tornou um tremendo sucesso, seguindo os passos de Resident Evil 2, pegando até mesmo a Capcom de surpresa. “Resident Evil 3: Nemesis foi provavelmente o jogo da franquia mais lucrativo naquele momento,” lembra Mikami. “Esperávamos vender apenas 1.4 milhões de cópias, mas chegou a 1.8 milhões. É inacreditável!”. Dados da Capcom mostram que o jogo finalizou a sua trajetória com 3.5 milhões.
Jill Valentine também se tornou, na época, uma importante representante feminina nos jogos, assim como Lara Croft em Tomb Raider e Chun-li em Street Fighter. Pela agressividade, Nemesis sempre é lembrado também e vive aparecendo em listas como melhor inimigo da história. “Fico muito feliz pelo desempenho do jogo nesses últimos 20 anos. Nunca imaginei que teria esse tipo de impacto na cultura gamer. Sou grato por isso”, comenta Aoyama sobre o sucesso de Resident Evil 3: Nemesis.
Depois de Resident Evil 3: Nemesis, Aoyama nunca mais teve envolvimento com a franquia e trabalhou em outros projetos na Capcom, como Onimusha: Warlords para PlayStation 2 e Dino Crisis 3 para o primeiro Xbox. Aoyama continuou na Capcom até 2004, quando saiu por motivos familiares.