Resident Evil não é mais o mesmo

Certamente a saga Resident Evil sempre gerou debates acalorados entre os fãs. Afinal, o que torna esta franquia tão polêmica? Um dos principais motivos é a constante transformação ao longo dos anos. Desde o lançamento do primeiro jogo em 1996, a Capcom buscou inovar em seus jogos por meio de abordagens narrativas e mecânicas promissoras para suas respectivas épocas.

Esta flexibilidade é evidente em experiências como Resident Evil Survivor, que introduziu uma câmera em primeira pessoa em 2000, sendo bastante diferente da câmera fixa dos primeiros títulos. Mais tarde, em 2005, Resident Evil 4 revolucionou a indústria com sua câmera em terceira pessoa sobre o ombro, um estilo de jogabilidade que se tornou referência e continua a influenciar jogos de ação e terror até hoje.



De fato, a saga Resident Evil funciona como um verdadeiro laboratório criativo, onde a Capcom experimenta constantemente novas ideias e mecânicas. Esta abordagem permite que a franquia se reinvente ao longo do tempo, explorando diferentes estilos de jogabilidade e formatos narrativos.

Contudo, não há dúvida de que estas mudanças geraram frustração em parte dos fãs da saga, criando divisões dentro da comunidade. Alguns apreciam os jogos clássicos, com foco no survival horror e na atmosfera de suspense. Outros conheceram a franquia a partir de Resident Evil 4 e se identificam com a ação mais intensa e a jogabilidade moderna. Há também aqueles que apreciam todos os títulos, valorizando as diferentes abordagens ao longo dos anos. Independentemente do ponto de vista, é inegável que a base de fãs de Resident Evil é diversa e, muitas vezes, dividida em relação ao futuro da franquia.

Sendo assim, este artigo se propõe a refletir sobre as constantes transformações pelas quais a saga Resident Evil vem passando ao longo dos anos, com o objetivo de responder a seguinte pergunta: afinal, Resident Evil ainda é o mesmo? Assim como aconteceu no lançamento de Resident Evil Village, quando a presença de lobisomens gerou comentários como “isso não é mais Resident Evil!”, o anúncio de Resident Evil Requiem reacende antigos debates sobre identidade, tradição e inovação dentro da série.

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Há quem defenda a ideia de que Resident Evil deixou de ser aquilo que um dia foi. Em outras palavras, a série supostamente perdeu parte de sua identidade original, especialmente após o lançamento de Resident Evil 4, ao abandonar elementos que a distinguiram. No entanto, esta percepção merece ser analisada com mais cuidado: será que esta transformação realmente descaracterizou a franquia?

Ao observarmos a trajetória de Resident Evil, podemos identificar dois pilares fundamentais que definem a essência da série: o gênero survival horror, podendo ser traduzido livremente como “terror de sobrevivência”, e a presença constante de armas biológicas como ameaça central.

Embora o gênero survival horror tenha ganhado notoriedade mundial com o lançamento do primeiro Resident Evil em 1996, ele já existia anteriormente em jogos como Sweet Home (1989), Alone in the Dark (1992) e Clock Tower (1995). Estes títulos foram, inclusive, influências diretas no desenvolvimento de Resident Evil. Aliás, aqui no REVIL já abordamos a história e a importância do survival horror para a série e para a indústria dos games no REVILcast número 29.

De forma geral, o gênero survival horror se caracteriza por colocar o jogador em um ambiente hostil, no qual é necessário enfrentar inimigos perigosos com recursos limitados. Esta escassez de munição, armas, itens de cura, entre outros, cria uma sensação constante de desvantagem e vulnerabilidade, o que intensifica a tensão e o medo durante a jogatina.

Além do combate, o jogador também precisa lidar com a resolução de quebra-cabeças, a administração cuidadosa de recursos, a coleta estratégica de itens e a exploração detalhada dos cenários. O medo não vem apenas dos inimigos em si, mas do ambiente opressor e do constante risco de não estar preparado para o que está por vir. Este terror psicológico é alimentado por elementos como a iluminação sombria, trilhas sonoras inquietantes e ambientes claustrofóbicos ou macabros.

Estas características estão claramente presentes em diversos títulos da franquia, como Resident Evil (1996), Resident Evil 2 (1998), Resident Evil 3 Nemesis (1999), Resident Evil CODE: Veronica (2000), Resident Evil Zero (2002) e Resident Evil 7 (2017), entre outros. Cada um deles, à sua maneira, reforça os pilares do survival horror que ajudaram a consolidar Resident Evil como uma referência no gênero.

Ainda assim, é importante destacar que o critério do survival horror se torna menos evidente, e, em alguns casos, praticamente ausente, em títulos como Resident Evil 4, Resident Evil 5 e Resident Evil 6. Nestes jogos, o jogador enfrenta um grande número de inimigos, muitas vezes em forma de hordas, contando com um vasto arsenal de armas e uma abundância de recursos. A sensação de vulnerabilidade, característica essencial do survival horror, dá lugar a uma experiência mais voltada para a ação, em que o jogador se sente mais seguro, confiante e até mesmo poderoso diante dos confrontos com inimigos e chefes.

Embora Resident Evil 4 tenha sido o ponto de virada na introdução destes elementos mais dinâmicos e voltados ao combate, ele ainda preserva, em certa medida, aspectos do survival horror que marcaram os jogos anteriores. Ainda é possível encontrar a necessidade de resolver quebra-cabeças, administrar recursos com certa cautela e organizar itens no inventário, ainda que os recursos não sejam tão escassos quanto antes. Além disto, o cenário em que Leon S. Kennedy se encontra é claramente hostil, povoado por inimigos perigosos e envolto por uma ambientação sombria, opressiva e desesperadora, o que mantém um nível considerável de tensão e receio ao avançar.

Resident Evil 4 HD

Já em Resident Evil 5 e Resident Evil 6, o foco na ação se intensifica ainda mais. Ambos os jogos apresentam sequências frenéticas, com grande volume de inimigos atacando simultaneamente os personagens, tiroteios constantes e uma ambientação mais voltada para o frenesi do que para o medo. Por conta destas características, muitos fãs e críticos passaram a classificá-los dentro de um gênero distinto: o action horror, ou “ação de horror”, em tradução livre.

Ainda que se argumente que estes títulos se distanciam do survival horror, abandonando muitos de seus elementos fundamentais, o segundo critério essencial da franquia permanece intacto: a presença das armas biológicas.

Desde o primeiro jogo, estas criaturas geneticamente modificadas são os principais inimigos enfrentados pelos protagonistas. Ao longo da série, o enredo se expandiu, revelando cada vez mais detalhes sobre os experimentos da Umbrella Corporation e seus desdobramentos. Diversos documentos nos jogos, relatórios e arquivos espalhados pelos cenários ajudam a construir uma mitologia complexa e coesa em torno da criação e evolução destas armas biológicas, reforçando a identidade central da franquia.

A Umbrella Corporation, ao longo da saga Resident Evil, dedica-se incessantemente ao desenvolvimento de armas biológicas cada vez mais poderosas, letais e, sobretudo, inteligentes, suficientemente capazes de seguir ordens e agir de forma controlada em campo. Um exemplo emblemático desta engenharia genética são os Hunters: criaturas criadas a partir da inserção do DNA de um réptil infectado com o T-Vírus em um óvulo humano fertilizado. O resultado é um monstro com alta mobilidade e força física, capaz de obedecer a comandos simples. Seu objetivo primário é eliminar indivíduos geneticamente imunes ao T-Vírus ou que tenham sido infectados e transformados em zumbis, uma espécie de “limpeza seletiva” a serviço dos interesses da Umbrella.

Hunter - Resident Evil HD

Esta lógica se repete ao longo de toda a franquia: independentemente do título, o protagonista sempre precisa enfrentar armas biológicas e sobreviver a elas. Naturalmente, tais criaturas vão se tornando mais avançadas e sofisticadas com o passar dos jogos. Um marco desta evolução é o Nemesis, introduzido em Resident Evil 3. À época, ele representava o ápice da engenharia biológica da Umbrella: além de sua força descomunal, é capaz de seguir ordens complexas, adaptar seu comportamento ao ambiente e tomar decisões por conta própria para alcançar seu objetivo que, no caso, era eliminar os membros restantes da equipe S.T.A.R.S. sobreviventes ao incidente da Mansão Spencer. Como se não bastasse, Nemesis também manuseia armas, como a icônica bazuca, o que representa uma clara evolução em relação ao Tyrant, o chefe final do Resident Evil de 1996 e no remake, até então considerado a arma suprema da corporação.

A presença de zumbis, embora marcante, não deve ser considerada um elemento indispensável à essência de Resident Evil. Estas criaturas nada mais são do que uma forma primitiva de arma biológica, um produto do T-Vírus. Diferentemente dos Hunters, que foram projetados para executar ordens específicas, os zumbis são incontroláveis, movidos apenas por instinto. Ainda assim, possuem valor estratégico para a Umbrella, seja como agentes de caos, seja como cobaias em experimentos de campo.

É importante destacar que os surtos de zumbis na Mansão Spencer e em Raccoon City resultam de acidentes biológicos, ou seja, vazamentos não intencionais do T-Vírus, e não representam o objetivo central da narrativa. Embora os zumbis sejam inimigos recorrentes, muitas vezes os primeiros que o jogador encontra, sua presença decorre de eventos colaterais. Assim, à luz da lógica de constante aprimoramento das armas biológicas ao longo da série, é perfeitamente coerente que jogos mais recentes não incluam zumbis tradicionais. Sua ausência não compromete a identidade da franquia.

Com o colapso da Umbrella a partir dos eventos de Resident Evil 4, outras organizações, indivíduos e até governos passaram a ter acesso a amostras virais. Isto resultou na criação de novos agentes patogênicos, como o Uroboros e o C-Vírus, e, por consequência, em armas biológicas ainda mais complexas e perigosas. Em resumo, a constante presença de armas biológicas, em suas diferentes formas e origens, é o verdadeiro fio condutor da série Resident Evil, representando seu núcleo temático desde o início.

Umbrella - Resident Evil

Este segundo critério (a presença de armas biológicas) está presente em todos os jogos da saga Resident Evil e constitui um dos pilares fundamentais de sua identidade. Por isto, afirmações de que Resident Evil 7 não seria um “verdadeiro Resident Evil”, ou que se trata apenas de uma cópia de Outlast, carecem de fundamento. Apesar da mudança de perspectiva para a primeira pessoa e do clima mais intimista e psicológico, o jogo mantém intactos os elementos centrais da franquia.

Em Resident Evil 7, acompanhamos Ethan Winters, um civil comum, que se vê envolvido em um incidente bioterrorista ao entrar em contato com uma arma biológica criada por uma organização criminosa. A premissa não é diferente da de Resident Evil 2, por exemplo, em que Leon e Claire Redfield também são colocados em uma situação extrema causada por um vazamento viral. A diferença está na forma como o terror é apresentado, mas a essência narrativa permanece a mesma.

Assim, não há como ignorar a continuidade temática proporcionada pelas armas biológicas. O fio condutor da série é justamente o embate constante entre seres humanos e formas de vida alteradas por vírus, parasitas ou experimentos científicos, frutos da ambição de corporações e grupos criminosos em transformar organismos em armas. Esta premissa está presente desde o primeiro jogo, em 1996, e segue firme até os títulos mais recentes.

Mesmo que se argumente que o survival horror tenha sido deixado de lado em certos momentos da franquia, a Capcom deixou claro, com Resident Evil 7, que reconhece o valor deste gênero para a identidade da série. Entretanto, ainda que este elemento varie de intensidade, o uso de armas biológicas permanece constante, e é justamente este aspecto que garante a coesão da saga ao longo das décadas.

Resident Evil 7 - iPhone

Dito tudo isto, conclui-se que estes dois critérios – o gênero survival horror e a presença das armas biológicas – são fundamentais e são a essência da saga Resident Evil. Portanto, o argumento simplista de que “isso não é Resident Evil” não se sustenta diante da análise apresentada aqui. Enquanto os jogos continuarem explorando a sobrevivência do personagem perante a ameaças biológicas, eles permanecerão fiéis à essência da franquia.

Isto, contudo, não significa que títulos como Resident Evil 4, Resident Evil 5 e Resident Evil 6 devam ser desconsiderados ou menosprezados. Estas obras representam escolhas da Capcom em explorar tendências diferentes, oferecendo experiências mais focadas na ação e, mesmo com a redução do terror de sobrevivência, são jogos de alta qualidade que merecem ser apreciados por seus próprios méritos.

Entretanto, é inegável que o gênero survival horror tem papel central na identidade da saga, fato evidenciado pelo retorno a este estilo nos lançamentos mais recentes. Ainda assim, a ausência temporária deste elemento não faz com que o jogo deixe de ser Resident Evil. O critério das armas biológicas permanece inquestionavelmente fundamental, embora o survival horror também seja um componente importante.

Vale ressaltar que a classificação entre survival horror e action horror não exclui a presença das armas biológicas. Por exemplo, Resident Evil 5 é claramente um jogo de ação e horror, no qual os protagonistas enfrentam criaturas biológicas desenvolvidas por uma corporação maligna e precisam lutar para sobreviver. A sobrevivência diante destas ameaças pode se dar em moldes do action horror ou survival horror, mas acredita-se que seja preferível o terror de sobrevivência.

Resident Evil 5 - Chris Redfield

Por fim, a adoção da perspectiva em primeira pessoa em Resident Evil 7 deve ser vista como uma inovação estilística escolhida pela Capcom, e não um ponto negativo para o jogo. Trata-se de uma obra estupenda, que preserva inúmeras características da saga, incluindo os dois critérios fundamentais debatidos neste artigo.

“Ah, mas lobisomem e vampiro não são Resident Evil!” Ora, depois de testemunharmos Alexia Ashford se transformar em uma criatura híbrida entre planta humanóide e inseto voador, torna-se difícil sustentar que um humano alterado para se assemelhar a um lobisomem esteja fora dos limites da franquia. O cerne da saga sempre foi o uso e os desdobramentos das armas biológicas, não importando necessariamente sua forma final. Cabe agora a nós aguardarmos o lançamento de Requiem para descobrirmos quais novos horrores e mistérios esta saga, que tanto nos fascina, ainda nos reserva.