O mês de junho começou bem agitado para os fãs de Resident Evil. A franquia de 25 anos recebeu novidades sobre as duas séries da Netflix, a DLC de Dead by Daylight e pequenos anúncios na E3 no painel da Capcom.
Durante o Geeked Week, a Netflix além de liberar os minutos iniciais de Resident Evil: No Escuro Absoluto, nos revelou o elenco da tão inusitada série em live-action com a Nova Raccoon City, com os nomes como Lance Reddick, Ella Balinska, Tamara Smart, Siena Agudong, Adeline Rudolph e Paola Nunez.
Mas não só de alegria vive o mundo dos fãs de RE. A nomeação de Lance não agradou alguns jogadores mais conservadores da saga. Isso porque Lance irá interpretar nada menos que o icônico vilão da série: Albert Wesker. Lance Reddick é conhecido por seus papéis em séries como Lost, Law & Order e CSI Miami. O ator também é um talentoso dublador, tendo emprestado sua voz para vários jogos da franquia Destiny, bem como Horizon Zero Dawn e Horizon Forbidden West, e para os seriados Rick and Morty e Castlevania.
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— Lance Reddick (@lancereddick) November 21, 2020
Que, infelizmente, vivemos em um mundo cheio de preconceitos e carregado de discriminações não é novidade para ninguém. Até mesmo em ambientes feitos para diversão, como o mundo dos games e seus encontros, sejam presenciais ou virtuais, temos casos lamentáveis de preconceito, chegando muitas vezes à ocorrência de agressões verbais e ameaças graves.
A nomeação de Lance para a adaptação fez muito barulho por ser um homem preto, interpretando um personagem que em todas as suas aparições na franquia era de um homem branco e loiro. Alguns dos comentários que circularam nas redes (do REVIL, inclusive) eram de que a escolha do personagem traria uma descaracterização ao vilão. A descaracterização é, conforme o próprio nome, o ato de ir contra a caracterização do personagem. A caracterização no contexto de personagens de jogos refere-se a características que são estipuladas na sua criação e, devido a repetição em diversos jogos, acabam sendo vistas como AS CARACTERÍSTICAS QUE DEFINEM O PERSONAGEM. É importante reconhecer que essas características carregam os ideais dos seus criadores, visões de mundo, personalidade, gostos, etc.
Basicamente, muita gente guarda um apego pessoal com o personagem e isso é natural. A gente consegue ver exemplos como Dante, de Devil May Cry, que sofreu muita crítica quando mudaram o design para o DmC: Devil May Cry, que é um exemplo de uma comunidade de fãs que não aprovou o novo design por simples motivo de apego, sem nenhum preconceito inclusive, afinal, ele estava mudando de um homem branco para um homem branco ligeiramente mais emo. Temos outra crítica a personagem em um dos icônicos personagens de Resident Evil, Chris Redfield, que sofreu não uma, mas duas mudanças drásticas: a completa reformulação entre Resident Evil: CODE Veronica e o 5° título da franquia e, novamente, em Resident Evil 7 Biohazard, onde ele está irreconhecível.
O problema é que a linha entre o apego com a franquia e noções tóxicas, e até preconceituosas, é algo que muita gente não percebe ou até se recusa a ver, mas ela existe e é tênue. Ademais, quando temos um histórico tão longo das mesmas discussões sempre que um personagem é representado fora do espectro normativo (ou seja, do qual já estamos acostumados), fica escancarado que essa linha foi passada.
Precisamos entender hoje como a indústria do entretenimento funciona: conteúdos são reciclados e é muito mais seguro apostar em uma marca já conhecida, com personagens já estabelecidos, do que em algo totalmente novo e, francamente, não podemos criticar essa abordagem porque somos nós que a pedimos. Dentro de uma comunidade de fãs, se você pertencer a alguma, deve notar um forte medo a mudanças e possibilidades de reboot preocupam uma grande parcela de fãs, sendo que uma parte muito vocal da comunidade sempre irá pedir pelos personagens conhecidos de volta. E, francamente, quando bem feito, é ótimo poder acompanhar o desenvolvimento daqueles personagens que conhecemos há décadas, que fazem parte da nossa vida e não dá pra criticar um estúdio em manter seu personagem, quando os próprios fãs pedem tanto por ele.
Porém, ao olhar a indústria de uma maneira mais metalinguística, temos que encarar nosso período histórico, onde estivemos e onde estamos: muitos dos personagens que acompanhamos vieram de um lugar na história onde minorias não tinham tanto espaço nem na representação midiática, nem na produção desse conteúdo. Mas FELIZMENTE os tempos mudam, aos poucos mais mudam, e hoje é nítido o que sempre foi a verdade: as tais ditas “minorias” não tem nada de pequenas. Nós, assim como eles, consumimos esses conteúdos desde pequeno e assim como desejamos criar esse conteúdo, também desejamos nos ver nele. Afinal, mesmo que apenas mulheres, por exemplo, sejam enquadradas em “minorias”, elas já são a maior parte da população mundial, então de pequeno essas comunidades não tem nada e fingir que esse é um público mínimo não é honesto com ninguém.
Além do mais, mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+ e de diferentes crenças englobam grande parte da indústria e tem que se ter em mente que quando um estúdio conta a história de uma pessoa negra, ele não está entregando essa história para agradar um grupo separado, desconexo, dentro do próprio estúdio que já existe essa parcela de pessoas. Além disso, não é certo negarmos a possibilidade dela se representar, como também de representar a outros indivíduos. Se você nota que o conteúdo disponível de repente consiste cada vez mais em pessoas de diferentes etnias, ótimo! Isso pode ser um sinal de que esse conteúdo está sendo cada vez mais produzido por pessoas diferentes, com mentalidades diferentes, que estão ali apenas para enriquecer o projeto que estão a produzir.
Mas aí entramos na velha questão: “Não tenho problemas com pessoas x na minha série, mas porque não criar um personagem próprio pra ela? Pra quê mudar o que já está estabelecido?“. Bem, como já falado, a tendência de manter as marcas já estabelecidas não vai embora a nenhum momento e suspeito que você, como fã, nem deseje que isso ocorra, mas ao se trabalhar com um produto feito há tanto tempo, mudanças são um passo lógico, ainda mais quando esse produto de talvez 30 anos está sendo produzido por mãos cada vez mais diversas. Então, temos que entender que nosso mundo é outro, os produtores são outros e os espectadores agora são mais ativamente representados.
Mudar uma característica que não enriquece o personagem, uma característica que não aponta nada sobre ele não é algo sobrenatural, é apenas adaptar um personagem para que ele possa ser honestamente construído dentro dessa NOVA era na indústria. Se um ator de alto calibre se mostra perfeito para representar aquela personalidade e se mostra acima da competição que se dispõe a interpretar o personagem, por que não contratá-lo? É um processo natural, que é pensado não só por uma pessoa, mas por toda uma equipe para representá-lo da melhor forma possível. É de interesse de toda a produção entregar um produto que os fãs irão aprovar e uma mudança não é mal pensada, nem mesmo um ataque, é apenas isso: uma mudança. Que por si só, traz sinais extremamente positivos e benéficos para uma grande parcela de pessoas que se interessam em trabalhar com entretenimento ou apenas se identificar com ele.
Conheça o elenco da série live-action de Resident Evil da Netflix. A Nova Raccoon City vai contar com: LANCE REDDICK / ELLA BALINSKA / TAMARA SMART / SIENA AGUDONG / ADELINE RUDOLPH / PAOLA NUNEZ. O anúncio foi feito durante a #GeekedWeek pic.twitter.com/UshG2lmAG5
— REVIL (@revilbr) June 11, 2021
Esta não é a primeira nem será a última em que indivíduos xingaram nas redes sociais com escolhas de atores para adaptações ao cinema e à TV. Recentemente, apenas com a hipótese de Michael B. Jordan ser o primeiro Superman negro, houve relutância por uma “descaracterização” do personagem – perceba que o ator sequer foi confirmado no papel.
Estelar, da série Titãs, foi outro caso polêmico. A atriz Anna Diop, escalada para viver Kory Anders, virou alvo de ataques nas redes sociais por, novamente, “descaracterizar” a imagem de Estelar que os fãs tinham dos quadrinhos. Diop, uma mulher negra, interpreta uma alienígena com a pele alaranjada e cabelo escarlate.
Preconceito é uma opinião desfavorável que não é baseada em dados objetivos, mas unicamente em um sentimento hostil motivado por hábitos de julgamento ou generalizações apressadas. A palavra também pode significar uma ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial.
Nestes três casos, a reclamação do “fã” deu lugar ao racismo puro, com argumentos como “e se um ator branco fosse escolhido para interpretar um personagem negro, o que vocês achariam?“, como se isso já não acontecesse e não fosse absurdo o bastante para se usar como contra-argumento.
Claro, sempre há a opção de criar novos personagens e ela é válida. Mas a partir do momento em que um elenco original principal é composto exclusivamente de pessoas brancas, qual espaço esse novo personagem teria? Seja honesto, se fizessem uma série sobre sua mídia favorita, você acharia justo escalar o ator mais promissor para um papel secundário apenas porque sua etnia não se encaixa em uma decisão automática tomada há décadas atrás?
E se, por algum acaso, esse novo personagem tomasse a maior parte da série, pois, afinal, é interpretado pela estrela da série, você realmente iria aceitar em ver seus personagens que já conhecem ficar de lado em prol desse personagem novo? Podemos aqui citar os personagens na adaptação de Paul Anderson, onde Milla Jovovich é massacrada por fãs de Resident Evil por interpretar um personagem novo, que ofusca completamente os demais da adaptação.
Felizmente, vivemos em um tempo onde começamos a nos incomodar mais com questões tão importantes como o preconceito. As grandes mídias já perceberam isso há algum tempo e mais personagens negros (e diversos) foram readaptados, atraindo novos espectadores e deixando muitos representados. Infelizmente, alguns alegarão que seus personagens não estão devidamente caracterizados porque um ator negro foi escalado para um papel. Neste caso, o racismo não está disfarçado, está bem visível como o sol ao meio dia de um dia ensolarado.
Isso não quer dizer que todos os personagens devam ser negros, por exemplo, mas sim, que não exista uma pré-escolha, onde o padrão seja ser branco.
Discussões sobre esses assuntos devem sim estar nos nossos dias. É necessário que preconceito e descriminação sejam expostos e criticados por todas as pessoas, sejam as que sofrem os ataques ou as que estão vendo e não concordam no mundo dos jogos. E não só nele, mas em qualquer outro – esses assuntos devem ser tratados com importância. Estamos em 2021 e não devemos mais discutir coisas banais e sim falar dos direitos que negros, mulheres, LGBTQIA+, entre outros tem. A comunidade gamer tem que estar aberta a deixar de lado os seus preconceitos, o racismo e qualquer forma negativa de tratar pessoas diversas. Precisamos de ambientes acolhedores e repleto de igualdade.
Por fim, convidamos a todos que reflitam sobre o tema, mas de forma sincera. A comunidade já está tóxica demais e só queremos que todos sejam respeitados e que se sintam acolhidos e representados. Não se trata de descaracterizar a obra ou o personagem, mas sim de dar um novo olhar, e isso é muito bom, afinal de contas a obra não deixará de existir. Ainda temos muito que aprender e o caminho é longo, mas ter a mente aberta e estar disposto ao diálogo só traz coisa boa pra gente.
Texto: Marcelo Rocha / Nicolas Gomes
Revisão: Natália Sampaio
Adequação estrutural: Ricardo Andretto