Arte: Frank Alcântara

A importância feminina em Resident Evil e na indústria dos jogos

Com o passar dos anos e, como consequência natural da evolução da sociedade, é mais do que sabido que as mulheres vêm retomando o seu espaço há muito negado. Sim, retomando, pois desde sempre lá estivemos nas mais diversas construções sociais ao longo da história da humanidade, mas a diferença é que agora os holofotes estão sendo direcionados a quem de fato faz com que a “roda gire”, mesmo que o trabalho estivesse “invisível” aos olhos de todos.

Isso não é muito diferente na história da franquia Resident Evil, que no chega aos seus 27 anos em 2023 – com o aniversário de clássico Resident Evil 1 em 22 de março. É um dos exemplos práticos de como a mulher tem sim papel fundamental, neste caso para o crescimento de uma série de jogos, só que a nossa “importância” ficou relegada a segundo plano. Mas não é só RE que padece desse “coadjuvanismo” feminino, pois isso também ficou muito escancarado na indústria dos jogos. Pera aí que eu explico!

Antes de chegar especificamente em Resident Evil, vamos observar o cenário da indústria como um todo. Desde seus primórdios, os videogames sempre foram vendidos como itens masculinos, inacessíveis e impensáveis como brinquedos – sim, de 1970 até mais ou menos o início dos anos 2000, videogames eram coisas masculinas, assim como carrinhos, bolas, revistas em quadrinhos, super heróis, e por aí vai – que as meninas também pudessem se divertir e compartilhar. Isso também se refletia nos jogos lançados na época como o Super Mario, Top Gear, o primeiro Street Fighter e Final Fight, por exemplo, dos quais refletia o pensamento da época: protagonismo masculino, a figura do “homem forte e viril” que resolve tudo no “tiro, porrada e bomba” e a mulher, quando aparecia no jogo, era quase sempre a “donzela em perigo”, fraca e delicada e tinha que ser resgatada.

Samus Aran no final de Metroid 2: Return of Samus (imagem via retropixel.net)

Mas isso começou a mudar, mesmo de forma sutil e tímida, quando alguns jogos – vou me ater aqui aos jogos porque essa mudança de mentalidade também aconteceu na indústria pop no geral, mas aí é outra conversa -, por exemplo, começaram a “introduzir” protagonistas femininas. E eu não poderia deixar de reverenciar a dona Samus Aran que foi confirmada como mulher no final de Metroid 2, isso em 1991 – imagino o burburinho na época, já que eu tinha só 6 anos de idade. Era um comecinho bem discreto, mas uma porta de fato foi aberta.

E aí chegamos na famigerada década de 1990, onde o mundo desconhecia limites – quem viveu sabe!. Esta foi a década em que mais se tentou “apelar” ao protagonismo feminino nos jogos, no qual as lendárias franquias Resident Evil, Tekken, Mortal Kombat e até mesmo Street Fighter começaram a investir mais em figuras femininas como parte de seu protagonismo. Quem aí não souber quem é Jill Valentine, Chun-Li, Jun Kazama e Sonya Blade, saia logo desse buraco e vá se informar!

E, com isso, no meio de um nicho predominantemente masculino, para nós, meninas que nesta época gostavam de videogame, ter personagens femininas fortes, determinadas, com histórias próprias e capazes de resolverem qualquer coisa sem precisar de “um homem” era, no mínimo, inspirador. Imagina quando nos deparamos com dois jogos, por exemplo, muito amados hoje em dia, como Tomb Raider e Dino Crisis (o primeiro), no qual A PROTAGONISTA é uma MULHER! Nossa!!! Aquilo era, ao mesmo tempo, impensável e inspirador na época. Querendo não, ainda é até hoje: mulheres fortes, independentes e decididas, mesmo protagonistas de seus “jogos”, sempre serão “relegadas” a seus atributos e não por suas capacidades e, mais uma vez, caímos na velha armadilha do machismo: a sexualização das personagens femininas.

Regina, protagonista de Dino Crisis 1, em uma arte de um fan game

É um fenômeno presente até na atualidade, mas não apenas nos jogos, como em toda a indústria, no qual nunca é felicitado o protagonismo feminino – cujo sucesso é restringido pelo visual atraente e sensual (até sexual mesmo) ou é pela “lacração”, quando a protagonista em questão não é “dentro do padrão” do que se espera de uma mulher aos olhos da sociedade – aqui, leia-se “aos olhos dos homens”, embora saibamos que, infelizmente, nossa sociedade criou mulheres machistas.

Exemplo disso é a Bayonetta, que mesmo sendo um “Dante do DMC de salto”, ela é muito mais sexualizada que ele (ELE também é sexualizado, tá? Antes que venham encher o saco, mas o ponto aqui não é esse. Segura a emoção!). A personagem, além de ter um baita corpão e usar roupa justa, pra justamente destacar as suas curvas, durante a performance de seus golpes especiais ELA QUASE FICA NUA!!! – mais sexualizada que ela, impossível! – Mai Shiranui [Fatal Fury] caminhou para Bayonetta correr. Outro exemplo é a Ellie e a Abby de The Last of Us 2, duas protagonistas maravilhosas, fortes, com histórias impactantes, mas que sofrem críticas por conta de seu background, que nada interfere no enredo impecável (pelo menos pra mim é) que o jogo tem. Vem aí a conversinha fiada de “mimimi” e “lacração” que estamos de saco cheio de ver/ouvir. E adivinha quem mais vem com isso??? Isso mesmo, né?? Nem preciso dizer!

The Last of Us – Abby

Dito isso, o que podemos constatar disso tudo é que mudar o status quo do macho viril dominante, apenas dando a importância MERECIDA a todo esforço que nós, mulheres, fazemos todos os dias pelo simples reconhecimento E respeito que nunca recebemos, incomoda e muito. Incomoda por não mais permitirmos que sejamos reduzidas “a troféus” a serem conquistados, que a nossa beleza não diminui a nossa inteligência e que, sim, somos capazes de fazer o que quisermos, ocupar o espaço que quisermos e ser do jeito que quisermos! E lembrando que nada disso que falei aqui é novidade! Sempre fizemos e continuaremos fazendo, só que a diferença é que não mais seremos invisíveis.

Agora, mesmo que o protagonismo feminino, depois de tudo o que foi dito até agora, tenha ganhado o “reconhecimento” e o “espaço” que tem agora, no qual hoje em dia temos jogos maravilhosos protagonizados por mulheres (Control, Final Fantasy XIII, Fatal Frame, Alien Isolation, Returnal, TLOU2 e The Medium, por exemplo), a igualdade de gênero aqui tá bem longe de chegar (mas tá caminhando). Isso pode ser constatado quando, isso no caso de franquias já consagradas no mercado e aí vamos especificamente para Resident Evil, mesmo que elas se consagrem como protagonistas femininas, ao longo da sua jornada, acabam relegando-as a coadjuvantes e, assim, dando uma cara masculina à saga.

Lightning (ao centro da imagem), protagonista de Final Fantasy XIII

É notório que um dos fatores que fez Resident Evil um sucesso em 1996 foi o fato de se ter uma mulher policial como protagonista. Jill Valentine, juntamente como Lara Croft e Samus Aran, deixaram um legado na indústria como protagonistas femininas marcantes que, embora sexualizadas, e não é segredo pra ninguém que mulheres em “posição de autoridade” são um fetiche masculino – no caso da Lara, é só olhar pra ela para saber como era sexualizada também. Esse mal também recaiu na Claire Redfield, de uma forma diferente, quando lançou o Resident Evil 2 e o Resident Evil CODE: Veronica (a universitária motoqueira) e, de novo, na Jill em Resident Evil 3: Nemesis. Lembrando que até 1999, a franquia só tinha referência nas meninas (talvez pelos motivos errados), mas Jill e Claire eram protagonistas absolutas, tanto que as campanhas de Chris Redfield em RE1 e Leon S. Kennedy em RE2 são pouco mencionadas (ressalva para Ada Wong, mas chego nela já já).

Entretanto, como Jill Valentine foi a cara da franquia até 2005, quando foi lançado o Resident Evil 4 no GameCube, ela acabou perdendo seu “espaço”, atribuindo-se um protagonismo exagerado ao Leon. Com o lançamento de RE4 e o destaque dado ao personagem masculino, a Capcom retornou à fórmula dos jogos de ação dos anos 90, e muito comum em jogo de indústria japonesa que é extremamente machista, cuja sua missão é resgatar a donzela em perigo – vulgo filha do Presidente dos EUA – de cultistas raivosos numa vila no interior da Espanha. Apesar das minhas críticas pessoais que tenho sobre RE4que não é o foco aqui -, é inegável que foi a partir dele que a Capcom começou com um padrão que é irritante, mas “respaldado” pelo fãs da franquia: as protagonista femininas desta franquia foram para segundo plano, seja aparecendo como coadjuvantes, seja “protagonizando” spin-offs, ou mesmo “esquecidas no churrasco”.

Ashley Graham, a filha do Presidente dos EUA, e Leon S. Kennedy em Resident Evil 4 (2005)

Seguindo naquele ano de 2005, o RE4 fez muito burburinho por conta da total mudança de rumos da franquia, mas ele também “apagou completamente o espaço” de dois jogos maravilhosos, protagonizados por mulheres, que só começaram a ser notados quando foram portados para PlayStation 3, Xbox 360 e PC: Resident Evil 0 e REmake (Resident Evil HD remaster). Embora ambos padeçam dos “mesmos defeitos” de jogos com protagonistas femininas da Capcomas mulheres são mais frágeis e precisam de uma ajuda extra ou de uma ajuda masculina -, eles são, sem dúvida, uma tentativa de trazer para os holofotes duas mulheres amadas pelo fãs de RE, Jill e Rebecca Chambers, mas que, de novo foram esquecidas.

É importante ressaltar aqui que não estou aqui dizendo que todos os jogos de RE, no caso, devem ser protagonizados por mulheres. O que estou dizendo aqui é que como a Capcom transforma as suas protagonistas em “ajudantes”, diminuindo completamente sua contribuição com o sucesso da saga, e até mesmo com a lore, quando as coloca sempre em segundo plano e seguindo “macetando” na nossa cabeça que Chris e Leon são os reis soberanos da franquia, quando todos nós aqui sabemos que sem a Jill, sequer teríamos Leon e tampouco o Chris mesmo, já que são poucos que jogam (e gostam) da campanha dele do RE1 de 96 (até do REmake mesmo), uma vez que eles têm a ilusão de que a da Jill é “mais fácil” – olha aí o que eu acabei de dizer sobre a visão da Capcom de as mulheres são frágeis e precisa de ajuda: é só comparar a diferença da mecânica das duas campanhas do RE1 que você vai ver.

Rebecca e Chris em Resident Evil HD Remaster

E isso tem sido um comportamento frequente da Capcom ao longo dos anos, mas vamos aqui nos ater a RE. Não só aconteceu com RE4, no qual repetiu-se a fórmula do resgate na moça indefesa e da espiã sexy e misteriosa (a Ada), como o Resident Evil 5, Resident Evil 6, Resident Evil 7 e Resident Evil Village usaram fórmula parecida, mas eu já explico.

Mas antes, vamos à Ada Wong! A Ada surgiu em 1998 como a “ajudante” na campanha do Leon, tornando-a mais fácil – como de fato é mesmo -, já que a Ada te auxilia a combater os inimigos, ao contrário da Claire que tem uma criança a proteger, voltando aqui a ideia do homem protetor – discurso do Leon o jogo todo para Ada, e ela nem aí pra ele – e da mulher cuidadora, já que vemos que no RE2 de 98 a Claire tem uma relação “maternal” com a Sherry Birkinuma coisa que mudou um pouco no reimaginado, onde elas têm uma relação mais fraterna que de mãe e filha, já que a Sherry “se vira” sozinha sem ela.

Entretanto, o que mais deixou Ada “mais atraente” ao público, ao contrário da Claire na época, já que ela só teve o seu brilho reconhecido em CODE: Veronica, foi o fato de que a Ada em nenhum momento do game dependeu do Leon para alcançar os seus objetivos, e quando eu digo “depender” não significa que ela não tivesse usado ele pra chegar onde queria, pois vimos no game que ela tinha uma agenda própria e ela não estava contando com ele pra concluí-la – isso fica bem mais claro quando lemos o Cidade dos Mortos, da Stephani Danelle Perry (S.D. Perry) que, mesmo não sendo canônico, ela consegue esclarecer essa relação entre Leon e Ada melhor que a Capcom (aliás, recomendo a leitura). E essa fórmula foi repetida no RE4 que graças ao Separate Ways, que trouxe a razão para esse jogo ser chamado de Resident Evil, mostrou novamente Ada com uma agenda própria para concluir e que usaria todos os recursos disponíveis para terminá-la, mesmo que significasse usar o Leon de novo.

 

No caso do RE5e do RE6 também, de modo geral -, a fórmula utilizada foi uma mistura do RE0 com o do RE4, com a devida vênia. Com Jill e Claire esquecidas nos churrascos da vida, quando da produção do RE5, cogitou-se que o jogo seria protagonizado por Chris e Barry e Jill aqui seria sequer mencionada. Porém, à parte das polêmicas envolvendo a produção do jogo, que não serão mencionadas aqui, decidiu-se por uma protagonista feminina NOVA – não vou comentar aqui o fato da Sheva Alomar ser preta e que a criação dela foi justamente por conta das críticas envolvendo a produção do RE5, mas eu quero deixar registrado aqui que eu AMO a Sheva e que ela é uma protagonista com muito potencial pra franquia – justamente para se criar um “falso equilíbrio” de uma dupla trabalhando juntas numa missão, quando na verdade o protagonismo do jogo é do Chris e do Albert Wesker, restando à Sheva apenas o papel de apoio e de “alívio da raiva” por causa da IA porca do jogo – fala aí se você não fica xingando a Sheva no jogo quanto está jogando RE5 solo, quando na verdade você deveria xingar a IA, já que ela controla o Chris quando você controla ela, tá bom?. E aqui batemos de novo na tecla das protagonistas femininas como coadjuvantes da própria história. Olha só o que aconteceu com Jill e Sheva após o RE5?

Sheva Alomar em Resident Evil 5

RE6 também tem o mesmo problema, só que com um agravante: além de prometer muito e entregar quase nada, tentou saturar ainda mais a presença de Leon e Chris no protagonismo, só que tentando repetir com Leon a fórmula do RE2 com a Helena Harper (coitada), e a do Jake Muller a “parceria” Birkin-Wesker, trazendo de volta a nossa garotinha Sherry, que cresceu num baita mulherão, mas, de novo, teve a sua participação reduzida à tentativa mequetrefe de formar um “casalzinho” com o Wesker Jr de procedência duvidosa. Já a campanha do Chris é um caso à parte, pois usou uma fórmula mais segura dos jogos de ação bem sucedidos da sua época, com a tentativa de “passada de bastão” ao introduzir o Piers Nivans como um potencial novo protagonista para a franquia, mas a Capcom preferiu matar isso e investir nas fórmulas clichês de casaizinhos forçados – ela tentou isso no RE1, no RE2, no RE3 e no CV. Nem preciso falar que a melhor campanha do jogo é a da Ada, mas ela não é o destaque do RE6, sendo a sua campanha um extra quando as três campanhas “principais” são finalizadas.

Helena Harper e Leon em Resident Evil 6

RE7 e Village “fugiram” um pouco à regra, já que o motivo principal que move o protagonista casa perfeitamente com algum plot de qualquer filme do Lian Niessen, aqueles em que ele só falta explodir uma bomba nuclear para resgatar a família dele, mas aqui vamos dar uma atenção especial ao Village e vocês já sabem o porquê. Sim, Lady Dimitrescu e suas filhas trevosas.

Quando surgiu as primeiras notícias de Resident Evil Village, o que mais chamou atenção foi a apresentação da Lady D, uma das Lordes do vilarejo, com seus mais de 2 metros de altura, bem distribuídos em seu corpo curvilíneo de cintura bem marcada e seios voluptuosos, elegantérrima e uma vampira, sem contar com suas belas filhas, todas muito bonitas, mas com aquele ar trevoso e gótico. Não sei dizer se a altura da Lady D é algum fetiche pra alguém (talvez até seja), mas que com certeza as outras características que acabei de citar são e isso é um outro tipo de sexualização feminina nos jogos em geral: normalmente, a mulher extremamente sexy é “uma vilã” porque as mocinhas são belas, recatadas e discretas. E isso se aplica à franquia RE também!

Lady Dimitrescu

Lembrem-se das “vilãs” que temos na franquia. Salvo algumas exceções, como Alexia Ashford, Alex Wesker, Annette Birkin e Carla Radames, as vilãs que apareceram na franquia são “facilmente identificáveis”, já que normalmente são mulheres sexys e curvilíneas, como a Excella, a Rachel, a Lady D e suas filhas e até a Mãe Miranda na sua última forma. O que eu quero dizer aqui é que a indústria de jogos no geral, e não só a Capcom, utiliza a faceta da aparência da mulher como uma forma identificar seu “caráter”, ou seja, essa é uma forma machista de dizer que se a mulher não se vestem de forma “adequada” ou “recatada”, normalmente é mal caráter e, por consequência, uma vilã.

Aliás, só quero fazer uma observação aqui que me ocorreu, no caso da Ada. Embora muitos achem que a Ada faça parte do time das “mocinhas” de RE, ainda muito se especula de “que lado” ela está, mas reparem como ela está vestida em RE2, RE4 e RE6 e, também, na maneira como ela age! Embora ela esteja bem vestida, com roupa colada e/ou decotada, tudo isso, além do comportamento dela e a postura durante o game, deixa muita margem para especulação, mas eu prefiro “categorizar” a Ada como anti-heroína, que eu acho mais adequado a ela.

Ada Wong em Resident Evil 4

Eu poderia ficar aqui apontando mais coisas sobre como a Capcom se comporta com as personagens femininas em RE, mas não vou comentar a pataquada dos filmes do Paul Anderson, do Bem-vindo à Raccoon City, do Resident Evil: No Escuro Absoluto, das animações – é com contigo mesmo, Vendetta -, e até falar um pouco do nude mod, porque isso aqui ia virar um TCC. Inclusive, tenho receio – quase um pressentimento mesmo – que a participação da Jill em Resident Evil: Dead Island vai ser ainda menor que a da Rebecca em Resident Evil: A Vingança, infelizmente. Mas o ponto que eu quero chegar é questionar como uma franquia que se consolidou no mercado e nos corações dos fãs, como Resident Evil, cuja a sua referência é uma das figuras femininas responsável por iniciar o “empoderamento” das mulheres nos videogames, que é a Jill Valentine, pode ser tão negligente não só com esse ícone, mas com as mulheres de RE?

Chis e Jill Valentine em Resident Evil: Death Island

Um exemplo claro disso são as recentes reimaginações da franquia lançadas em 2019 e 2020. Não entrarei no mérito da reimaginações/remakes e qual a minha visão, mas quero te chamar a atenção para algumas coisas sutis que a Capcom fez com eles. No RE2 clássico, embora “tentou-se” formar um casal Leon e Ada, e a Claire o papel de protetora de crianças, era evidente que Claire e Leon vinham construindo uma relação de amizade e parceria entre os dois, que se uniram no objetivo de procurar sobreviventes e fugir de Raccoon City. Essa lógica fez com as relações e as interações entre os personagens principais fosse mais fluida – considerando as limitações técnicas da época -, rendendo até um resgate de Sherry pelo Leon, já que a Claire confiava nele a esse nível.

Todavia, isso foi totalmente ignorado na reimaginação, no qual os dois são completos estranhos a campanha inteira e ainda tentaram forçar um casal entre Leon e Claireo que é completamente estapafúrdio, já que até nas animações em CG você nota claramente que eles SÃO AMIGOS – e, com isso, deixando a Claire com o seu protagonismo em segundo plano, o que é uma pena.

Claire Redfield e Leon S. Kennedy em Resident Evil 2

Já no RE3 reimaginado – não vou entrar aqui nos defeitos do jogo, tá -, o problema foi a troca do figurino da Jill, que foi de um top “tomara que caia” e uma minissaia para um jeans e regata. Minha gente, aí eu clamo pra lógica de vocês – e isso que já me perguntava em 1999 -, como raios uma minissaia e tomara que caia é roupa adequada para a situação de apocalipse zumbi?????? E aí eu vou responder para vocês, depois de todos esses anos, já que o tempo amadurece a gente – e, sim, eu sei que vão frescar, mas fresquem daí: sexualização da personalidade feminina!. Sabe porque eu digo isso? Pois não houveram reclamações da mudança de roupa da Claire no RE2, que também era ridícula, mas era a moda dos anos 90, e a versão reimaginada manteve o seu visual de motoqueira universitária. Outra mudança também nos dois jogos e que também incomodaram “um pouco” foi que a Jill e a Claire ganharam personalidades mais fortes, determinadas, sendo mais presente no RE3, já que vimos o Carlos Oliveira “sem jeito” com os tocos que a Jill dava nele.

 

Agora, meu caro leitor, depois de tudo isso que eu coloquei aqui, quero convidar você a uma reflexão que eu mesma venho fazendo desde que comecei a amar e acompanhar essa franquia. Tudo o que eu pus aqui foi apenas para que você percebesse o desconforto que eu, como mulher, vi ao longo desses anos e como o caminho a ser percorrido ainda é longo. Quando tratamos de representatividade nos videogames, agora aqui me refiro a tudo que ele abraça, seja nos próprios jogos, na produção de conteúdo, nos e-sports, e por aí vai, e aqui vou me ater somente à representatividade feminina, pois ela vai muito além do ter mulheres nos jogos.

É se enxergar e se identificar como parte de um mundo que você tanto gosta, que te faz bem, que te apresenta amigos, pessoas de todos os tipos, que te abre portas pra vida mesmo. Além disso, ter uma protagonista feminina num game do qual a força, a determinação e as habilidades dela são o foco, e não sendo ofuscado pela aparência dela, como é a Jill e a Lara Croft são pra mim, é sim virar uma referência de que SIM podemos fazer o que quiser, vencer os desafios e resolver os nossos problemas sem ser dependente de ninguém. Isso pra mim é tudo, pois sempre fez parte da minha criação como ser humano, pois sou de uma família de mulheres fortes e homens abertos que sempre prezam pela parceria e pelo respeito. É caminhar lado a lado, nunca ser melhor ou pior que ninguém, sendo as relações de confiança, proteção, respeito e parceria muito mais importantes que briga de ego de quem é melhor, homem ou mulher.

A reflexão que os convido é começar a observar a seu redor como as mulheres que te rodeiam são tratadas no dia a dia, seja na vida particular, no trabalho, escola, nos lugares que frequenta e até as produtoras de conteúdo que você apoia, independente do nicho que atuam, não se restringindo aos games. Agora, se faça a seguinte pergunta: se fosse um homem fazendo a mesma coisa que ela, a reação seria a mesma?

Essa é a pergunta que sempre me faço todos os dias, pois sim, sabemos que o machismo é cultural e está arraigado no comportamento da sociedade – lembra que eu falei que temos mulheres machistas? -, mas isso não muda o fato que de muito se confunde do que realmente queremos. A única coisa que sempre quisemos é RESPEITO. E isso inclui tudo isso que eu disse acima, pois não queremos ser reduzidas à coadjuvantes, ajudantes ou simplesmente não queremos ser invisíveis na nossa própria história, já que muito do que foi construído até aqui é resultado do trabalho árduo de homens E mulheres, mas só a eles recai os louros do reconhecimento, e a nós, o esquecimento.

Não queremos ser rotuladas pelo que vestimos, pelas escolhas que fazemos, pela profissão que escolhermos, pelas amizades que fazemos – porque, sim, existe amizade entre homens e mulheres, mas o machismo faz parecer que a amizade feminina sempre tem algum interesse por trás -, não ser reduzida a casalzinho pra ter alguma relevância, não ser o “bode expiatório” para “alívio” de polêmicas (caso da Sheva), não ser reduzida a seu “parceiro”.

Sheva Alomar e Chris Redfield em Resident Evil 5

O que queremos é que sejamos respeitadas como ser humano que somos, perfeitamente capazes de fazer o que quisermos, ocupar o espaço que quisermos e, sim, caminhar ao lado de vocês, homens. Assim como vocês gostam de cuidado e de independência, nós também gostamos e uma coisa não anula a outra, viu? Ser cuidada e protegida não é a mesma coisa que ser “donzela em perigo que precisa ser resgatada”, mas faz parte de qualquer relacionamento saudável do qual há reciprocidade e respeito das duas partes.

Nós não queremos estar nem atrás e nem na frente de vocês, e sim ao lado como parceiros que trilham essa jornada doida que chamamos de vida, com respeito e dignidade! Mas para que isso aconteça, não basta apenas eu aqui, uma mulher no auge dos seus quase 38 anos de vida, quase a minha vida toda aqui jogando videogame como parte das coisas que me fazem ser quem eu sou e que me faz muito feliz. Pois se a mudança também não for parte de vocês, homens, este texto/desabafo não vai além do que ele realmente é: um monte de palavras postas num texto frio e eu fico de louca reclamona.

Pra mim, jogar videogame, jogar Resident Evil, é (sempre será) um ato de paixão e resistência cujas as portas me foram abertas por um homem, meu tio Fábio (muito obrigado mesmo, tio!), que sempre me disse e mostrou que videogame é pra todo mundo, o que importa é a diversão e as lembranças que ele te dá! Do mesmo jeito, eu admiro e parabenizo as meninas que também estão comigo nessa jornada, agora pelo caminho das streamings, produção de conteúdo e e-sports! Essa conquista é toda nossa! Continuem sem medo pois eu tenho fé que vai melhorar. Não permitam serem silenciadas e/ou rotuladas por quem quer que seja, o problema nunca foi nosso!

E pra vocês, meninos, assim como o meu tio, abracem essa jornada conosco! Eu sei que é difícil para muitos de vocês perceberem, mas tudo isso que eu relatei aqui não é exclusivo de RE ou dos jogos em geral: é a nossa realidade diária! Sempre estamos nos esforçando muito para receber o mínimo, que é o respeito! E, por fim, quando eu peço para que abracem a nossa jornada, não caiam na armadilha do pensamento (bem comum, aliás) do “e se fosse sua mãe/irmã/filha/prima?” Vocês não precisam desses parâmetros para entenderem aqui que o respeito que reivindicamos é uma questão humana e isso só é bom pra todo mundo, inclusive para vocês!

Por isso, aos que já nos acompanham nessa jornada e às meninas/mulheres que ainda estão na luta, uma palavrinha para vocês: não esmoreçam, não desanimem e não desistam! Eu estava lá quando essa luta começou e muita coisa já melhorou e tenho fé que vamos evoluir mais.

Este conteúdo leva em consideração o Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8 de março, o mês de alerta à prevenção (saúde física e mental) e, ainda, fala sobre o respeito às mulheres em uma sociedade que mantém resquícios machistas em pleno 2023.

Colaborou com a revisão deste texto: Ricardo Andretto